Seu destino era ser mãe

Juliana Curi*

Nascida em 1941 em uma casinha na zona rural da cidade de Olímpia, no interior de São Paulo, Ruth Pimenta é a filha mais velha de cinco irmãos. De família simples, começou a trabalhar aos 14 anos vendendo os produtos da horta de seu pai Pedro no centro da cidade. Acordava todos os dias da semana às seis horas da manhã, tomava banho, arrumava a cesta com os legumes e pegava o ônibus que passava na estradinha de terra em frente ao sítio. Sempre se imaginava indo além do centro da cidade.
Aos 18 anos conseguiu juntar um dinheiro pra comprar uma passagem de ônibus e o pouco que restou, hoje o equivalente a trinta reais, colocou na carteira e com uma pequena mochila veio para a capital. Minutos antes de partir, seus pais percebendo que a determinada filha não desistiria de sua viagem, resolveram ligar para uma tia que vivia em São Paulo e pediram para que a acolhesse.
E lá foi ela pela primeira vez para a cidade grande. H aos 63 anos, ela se lembra exatamente o que sentiu ao chegar na rodoviária. Toda aquela confusão, com pessoas correndo de um lado para o outro com suas malas. “Minha vontade era de voltar correndo para Olímpia e ficar com meus pais, eu fiquei uns trinta minutos parada na estação rodoviária até tomar a iniciativa de perguntar para alguém como chegava no bairro do Paraíso, onde morava minha tia”.
O estranhamento durou pouco. Rápida e bem adaptável, Ruth já começou a trabalhar uma semana depois. Seu primeiro emprego foi de assistente de cabeleireiro em um pequeno salão de bairro, no qual sua tia Neura conhecia a proprietária.
Ela se emociona ao lembrar de Marta, a dona do salão. “Infelizmente, depois que eu saí, eu nunca mais a reencontrei, mais me lembro como se fosse hoje dos anos que passei lá, o bom humor e a simplicidade de Dona Marta, cada cantinho daquele pequeno salão, as cadeiras de palha, os azulejos laranja, o cheiro de tintura de cabelo.Lembro do primeiro corte de cabelo que fiz, era uma velhinha chamada Ivone, e ela me disse, pode fazer o que quiser. Era um ambiente muito novo pra mim, eu sempre fui uma pessoa vaidosa, mas tinha vindo de um sítio no interior e não sabia nada do mundo. Lembro de um dia abrir uma revista e ver pela primeira vez uma foto de Brigitte Bardot, que em 1960 era uma diva do cinema internacional, na hora Marta e todas as clientes me disseram como eu me parecia com ela, e minutos depois meus cabelos castanhos se tornaram loiros. Tenho muita saudade dessa época”.
Por quatro anos Ruth trabalhou lá, sua rotina nesse período era estudar para terminar o segundo grau e juntar dinheiro. Difícil, mas conseguiu. Já com 24 anos, acordou uma manhã e foi procurar uma casa para morar. Sempre foi muito independente e não agüentava mais morar com sua Tia Neura, queria seu espaço e seu próprio salão.
Encontrou uma casa no mesmo bairro, um sobrado amarelo mobiliado, no andar de baixo funcionaria o seu salão e no andar de cima sua casa. Dois meses depois de alugar esse imóvel ela já tinha quatro fiéis clientes e foi a vez de sua irmã Doroti, de 22 anos, vir de Olímpia para São Paulo. “A Doroti sempre foi muito festeira, eu só pensava em trabalhar, mas com ela aqui as coisas começaram a mudar”.
O número de clientes começou a aumentar milagrosamente, e junto com as clientes velhinhas começaram a freqüentar pessoas jovens, até um que dia apareceu Leila. Em poucos minutos Leila e Doroti já papeavam como velhas amigas e Ruth, que não é tímida nem nada, se juntou ao papo. “Leila se parecia mesmo com Leila Diniz, estudava história na USP, era engajada, escutava MPB, e vivia em agitos sempre com algum namorado diferente. Tinha milhares de amigos e todos os dias algum programa interessante, peças de teatro, saraus em casa de amigos e festas , muitas festas.”
Foi o primeiro contato com a vida social paulistana, aos poucos as duas passaram a freqüentar festas e conhecer muitas pessoas interessantes, muito diferente de seus universos.

Jantar memorável
Em uma sexta-feira do mês de março, Leila liga de manhã. “Tenho um jantar hoje no Clube Monte Líbano, você não quer ir comigo Ruth?”. A amiga respondeu: “Tudo bem, quando eu fechar o salão eu vou para casa me arrumar e te ligo”.
“Não lembro direito, eu sei que estava cansada e sem muito pique pra ir aquele jantar, mas por alguma razão, sexto sentido talvez, eu me arrumei e fui, não esqueço da roupa que estava usando. Vestia uma calça boca de sino bem justa, e uma blusa de renda azul turquesa e sandálias plataforma. E por influencia de Leila, que nessa época só falava de David Bowie, o meu cabelo há semanas não era mais loiro e sim vermelho, vermelho sangue.”
Leila passou pra pegá-la em um Corcel azul escuro e lá foram elas para o jantar. Quando chegaram foram muito bem recebidas, porém Ruth estranhou o ambiente. Estava acostumada a freqüentar as festas de Leila com seus amigos sociólogos, músicos e atores, em ambientes descontraídos. “O Clube Monte Líbano, naquela época mais que hoje, era um lugar muito conservador de famílias tradicionais libanesas.”
Uma hora depois, quando Ruth já estava enturmada, chegou atrasado o último amigo que faltava, Rubens. O descendente de libaneses tinha 23 anos, estudava economia na Faculdade São Luis e morava com sua família em uma casa na rua Groelândia, nos Jardins, seus amigos eram todos do clube.
Quando foram apresentados, Rubens a achou linda, interessante e diferente, e logo foi falar com Leila. Ruth foi embora uma hora depois, porém, Leila já havia combinado tudo com Rubens e eles tramavam um outro encontro. Enquanto isso Ruth, que sempre teve um instinto materno, já tinha outra irmã, agora a mais nova, morando com ela. O nome de sua irmã caçula é Sonia idade e até ela se casar Ruth cuidou dela como uma filha, pagou seus estudos, faculdade e viagens.
Em um sábado ensolarado, Ruth resolveu passear com suas irmãs na famosa rua Augusta, na época, ponto de encontro de jovens. Quando saiu de uma loja, dá de cara com o rapaz do clube Monte Líbano. “Ele parecia um pouco ansioso, e eu, distraída que sou, não percebia que sua aflição era por que estava interessado em mim. Lembro de tê-lo achado mais bonito nessa vez que o vi, estava muito elegante.” Em meia hora de conversa o encontro já estava marcado: combinaram de ir jantar na mesma noite. Rubens passou em sua casa com seu Karman Guia preto, às oito e meia da noite.
“Fomos a um restaurante chamado La Buca Romana e foi lá que eu me dei conta de que estava jantando com o homem de minha vida. Percebi isso quando ele pegou na minha mão. Eu pensava milhares de coisas, achava ele muito jovem (dois anos mais novo) e que sua vida era muito diferente da minha e muitas outras perguntas.” Apesar de sua resistência, o namoro engrenou e três meses viveram um lindo romance.

Romance em compasso de espera
Até que um dia Ruth recebe uma ligação de Olímpia, era sua mãe dizendo que seu pai havia falecido, teve um infarte e morreu em poucas horas. Sua vida virou de cabeça pra baixo, seus três irmãos já estavam casados e com família, então sobrara pra ela a responsabilidade de cuidar de sua mãe e suas irmãs. Ruth passou alguns dias em Olímpia para resolver umas papeladas e voltou a São Paulo com sua mãe Maria Luiza, suas irmãs e sua cachorrinha vira-lata Fufi. Ruth se recuperou rápido da perda de seu pai, porém, com a loucura que estava sua vida agora, trabalhando mais, ela foi gradualmente se afastando de Rubens. Os meses se passaram e eles foram perdendo o contato, até que deixaram de se ver.
“Fui vivendo minha vida, conheci outros namorados, continuava trabalhando freneticamente, mas ele por algum motivo não saia da minha cabeça, tinha vontade de retomar o contato, mas ficava com medo”.
Entre um namorado e outro, Ruth encontrou uma pessoa especial, seu nome era Omar. Eles se conheceram em um baile de carnaval, Omar era muito amigo de Gino, marido de sua irmã Doroty. “Eu adorava os bailes de carnaval, naquela época as coisas eram mais inocentes, o lança perfume era usado para jogar nas pernas das garotas, e aquele carnaval de 1968, foi muito especial, foi quando eu conheci Omar, eu lembro de estar com um vestido branco e longo, com um enorme arranjo de flores na cabeça, e ele vestido de pirata, com uma barba enorme e os olho pintado, ele era muito arrojado para época, e nos identificamos na hora, ele acabará de se formar na POLI, e tocava sax nas horas vagas.”
E eles começaram a namorar mesmo, daqueles namoros que todos afirmam que vai acabar em casamento. Meses depois que se conheceram, fizeram uma viagem para a Argentina com mais alguns casais de amigos, e cada vez mais ficavam mais unidos e apaixonados. “Foi uma viagem incrível, eu nunca tinha saído do Brasil e conhecia poucos lugares, eu nunca tinha visto neve e Bariloche estava inteira branca, saíamos todos os dias, íamos a bares, restaurantes, tudo muito romântico, lembro de uma noite em Buenos Aires em que tínhamos bebido muito vinho, e quando passamos por uma praça vimos uma banda tocando tango, e na mesma hora começamos a dançar ali mesmo, e logo depois caímos na gargalhada, pois nenhum de nós sabia dançar, foram duas semanas inesquecíveis”.
E assim eles ficaram por três anos, Ruth continuou morando com sua família no Paraíso, mas seu salão, que aquela altura já tinha crescido significantemente, se mudou para uma casa mais espaçosa no bairro de Higienópolis.
Um dia Omar e Ruth foram ao cinema, e foi a partir daí que as coisas começaram a mudar. “Era um dia como todos os outros ele passou em casa com o Gino e fomos ao Cine Astor, lá no Conjunto Nacional. Nem me lembro do que íamos ver, só me recordo de estar parada na fila do cinema e quando eu vi o Rubens vindo em minha direção. Ele estava com alguns amigos, veio até mim, me cumprimentou e disse que eu estava linda. A única coisa que conseguia pensar depois disso era cadê o meu isqueiro, pois eu tremia tanto que precisava me acalmar, e querendo eu acendi o cigarro, minha mão tremia tanto, que Omar desconfiou que havia algo estranho”
Entraram na sala de cinema e ao final do filme Ruth já tinha tomado a decisão de deixar seu namorado Omar, e estava disposta a retomar contato com seu ex. “Não foi tão fácil tomar essa decisão, eu já namorava há algum tempo e já havia criado muitos vínculos. Depois do dia em terminei o meu namoro com ele, eu nunca mais tinha tido notícias. Até o dia de seu casamento, em que ele me procurou horas antes da cerimônia e me disse: se quiser eu deixo tudo por você”.
Os dias se passaram e Ruth criou coragem e ligou para Rubens, porém ele estava na praia, sua irmã Waldete disse que daria a ele o recado assim que chegasse. Mas como essa é uma história de encontros e desencontros, é claro que ela se esqueceu de dar o recado. Ruth esperou ansiosamente o retorno da ligação, um mês se passou e nada dele ligar. Ela não teve dúvida: passou na em sua casa, tocou a campainha e pediu para chamá-lo. Ele ficou muito surpreso ao vê-la. “Nunca vou esquecer a cara que ele fez, parecia não estar entendendo nada”.


E lá foram os dois para mais um encontro, dessa vez no Terraço Itália. No fim da noite, chegaram à decisão de que iriam morar juntos. Tudo muito rápido. Logo pela manhã, Rubens, filho caçula de libaneses tradicionais e conservadores, deu a notícia de que iria se juntar com sua namorada.
Nazira, mãe de Rubens, no começo não deu bola, achava que era fogo de palha de seu filho, mais quando completou uma semana que ele estava fora de casa é que ela se deu conta de que era pra valer. Ela não aceitava o fato de Ruth não ser uma mulher da colônia libanesa e que fosse de uma família simples. Traçara o destino de todos os filhos com casamentos arranjados e estava determinada a fazer algo a respeito. “Ela era uma mulher que exercia muita força sobre todos na família”.
Conseguiu dezenas de vezes fazer com Rubens voltasse para casa, inventava desculpas de que estava doente. No começo Ruth tentava conquistar a família Curi e se sentia muito incomodada com toda a situação. Mas Ruth se cansou de tentar e passou a viver sua vida normalmente, apesar de amar Rubens, já havia desistido de uma união.
“Eu sempre fui uma pessoa muito questionadora, com o mundo, e principalmente com minha vida, eu estava sempre em busca de novas coisas e do que eu achava que realmente me faria feliz. Então lembro do dia que eu descobri que nada no mundo me faria mais feliz do que ser mãe”.
Ruth andava distraída pela rua Angélica e viu um grupo de mães com seus bebês tomando sol na praça. “Eu não conseguia pensar em casamento, eu só conseguia pensar em ter um filho. Pensava, eu tenho meu dinheiro, tenho estrutura emocional e tenho muita vontade. Se fosse nos dias de hoje, sem dúvida alguma, eu seria adepta da produção independente”.
E então disfarçadamente, parou de tomar anticoncepcional e em 1977, aos 36 anos, descobriu que estava grávida de seu primeiro filho. Era uma tarde ensolarada de julho e Ruth já tinha certeza absoluta de que estava grávida, então fez o teste e confirmou. Rubens ao saber da notícia ficou muito feliz, mas como sempre pensou em como sua mãe reagiria ao fato. Por seis meses Ruth disfarçou sua gravidez, ela já era magra e passou a comer o estritamente necessário para o bebê. Aos sete meses de gestação, Ruth e Rubens se casaram, uma cerimônia só para os familiares, e mesmo assim ninguém desconfiava de sua gravidez. “Foram nove meses muito difíceis, eu tive que segurar tudo sozinha, mas eu estava disposta”.
Em 14 de abril de 1978 veio a recompensa. Depois de 24 horas de parto, nasce sua primeira filha Fernanda Curi, às 11h50 da manhã no Hospital Albert Einstein em São Paulo. “Depois que a Fernanda nasceu, tudo mudou, só quem é mãe sabe o que um filho representa”. Ruth resolveu vender o salão e Rubens, que na época já trabalhava no mercado financeiro, passou a assumir as contas da casa.
Sua vida se resumia em cuidar de sua filha, até resolveu a aprender a dirigir depois de tantos anos, para facilitar a locomoção de sua filha. Em 1979, nasce seu segundo filho, Rubens Filho, e em 1983 a caçula Juliana. Ruth se torna uma mãe zelosa.
Hoje, aos 64 anos, em seu apartamento no bairro do Morumbi onde mora com sua família, ao ser questionada se foi bem sucedida em sua jornada de vida, responde com um sorriso enorme. “Sim, fiz tudo que quis em minha vida e sou mãe de três pessoas maravilhosas que me enchem de alegria todos os dias”.
Agora Ruth pretende se dedicar a um curso de fotografia, que sonhou em fazer a vida toda. Conta que nunca se esqueceu de um dia em que passou de carro na ponte da Cidade Jardim em São Paulo e viu dois mendigos sentados na grade da ponte fazendo a barba, e na hora pensou o quanto gostaria de ter uma máquina fotográfica em mãos pra registrar aquele momento inusitado. E com seus três filhos já crescidos, também espera ansiosamente a chegada dos netos.

* Juliana Curi (jujucuri@hotmail.com), 22, cursa o penúltimo semestre da habilitação jornalismo na UniFIAMFAAM. Se forma no próximo ano e vai realizar um video-documentário sobre o grupo de teatro paulistano Teatro da Vertigem. Gosta da música e trabalha na MTV, no departamento de criação e linguagem visual. É a terceira filha do casal Ruth e Rubens Curi.