A retaguarda do guerrilheiro

A saga da mulher de Virgilio Gomes da Silva, o homem que comandou o seqüestro do embaixador americano no Brasil em plena ditadura militar*

Viver no exterior nunca foi um sonho para Ilda, jovem operária do bairro de São Miguel, no subúrbio paulista. Filha de imigrantes espanhóis, só queria se casar com um homem bom e trabalhador e ter um casal de filhos. O destino, sempre o destino, a obrigou a viver por longos 14 anos longe dos seus pais e irmãos. Afastada abruptamente de tudo o que até então fizera parte do seu mundo, as ruas conhecidas, sua língua, seus conhecidos, seus lugares preferidos, se viu um dia na estrada, saindo pela fronteira brasileira com o Paraguai com a esperança de dar um melhor futuro para os filhos.
Mas isso é mais adiante. Vamos ao início da reviravolta no destino desta jovem paulista, quando era ainda operária da Nitro Química de São Miguel Paulista e freqüentava o sindicato da fábrica. Foi lá que um dia conheceu seu futuro esposo, Virgílio Gomes da Silva. Oriundo do Rio Grande do Norte, Virgílio era funcionário do sindicato, militante do Partido Comunista e sonhador de uma sociedade mais justa. Em outra etapa da sua vida ele seria conhecido como o guerrilheiro Jonas. Mas isso também aconteceu mais adiante.
Foi amor à primeira vista. Depois de seis meses de namoro, eles se casaram, exatamente em 21 de maio de 1959. Um ano depois nasce o primeiro filho do casal. Seu nome não podia ser outro: Vladimir. Uma homenagem que o Virgilio fez ao líder da revolução soviética de 1917, Vladimir Lenin.
Mais um ano e nasce o segundo filho. Este leva o mesmo nome do pai, Virgilio. O casal vai tocando a vida. Ilda continua na indústria até Virgílio abrir um barzinho. Serviam comida e cachaça barata. Assim transcorre a vida até o golpe militar de 1964. A chegada da “revolução” mudaria seus destinos para sempre. A partir desse dia a vida do casal nunca mais seria a mesma.
Entre 1964 e 1968, Virgilio passa da atividade sindical à oposição política e, desta, à luta armada em uma das organizações mais radicais de oposição à Ditadura, a Ação Libertadora Nacional (ALN). Uma organização formada por ex-membros do Partido Comunista e outros militantes da esquerda, que acreditavam na luta armada como única via para tirar os militares do poder e instaurar um governo socialista no Brasil.
Período nada fácil para Ilda. Seu marido passou a viver na semi- clandestinidade. E junto a ele, a esposa e os filhos. A família trocava de casa com freqüência, morando sempre em endereços da periferia, como São Miguel Paulista, ou em cidades do interior do Estado, como Poá e Ribeirão Preto, até o momento em que Virgilio teve que sair do país. Ilda lembra quando foi chamada pela primeira vez na policia. Nessa ocasião, foi mais como forma de advertência, uma ameaça para o marido, enviada por meio dela.
- Perguntaram das atividades dele e onde estava. Mostraram-me varias caixas lotadas de papéis e falaram que tudo aquilo eram acusações que recaiam sobre Virgílio e que era melhor ele parar com essas coisas do sindicato e do partido – lembra Ilda
- Cheguei em casa apavorada e disse a ele que estava na hora de se esconder para valer, pois se o pegavam, seria condenado.
Virgílio escutou-a. Saiu do país com destino a Punta del Este, Uruguai. A escolha dessa cidade não foi por acaso: fazia parte de um plano maior. Em Punta, Virgilio aguardava a conexão Havana, que o levara a Cuba com a missão de fazer treinamento de guerrilha.
Voltando de Cuba, Virgílio entra de vez para a clandestinidade e participa de ações contra o regime militar. A célula da organização que dirigia assaltava bancos e estabelecimentos comerciais para financiar o movimento de resistência.
Ilda nunca sabia o que seu marido ia fazer. Conviviam com a ameaça de uma denúncia que os levasse à prisão. Daí que fosse sempre preservada como prevenção a uma possível detenção em que fossem utilizados os conhecidos métodos de interrogatório da policia e os órgãos de repressão. Nesse caso era melhor não saber de nada.
- Só quando ele voltava, que me contava. Fizemos isso e aquilo.
Em 1968, nasce o terceiro filho do casal. O nome deste seria uma homenagem ao pai de Ilda, Gregório. Ilda e Virgilio se viam cada vez mais esporadicamente. Nessa época Virgilio já era o procurado “terrorista” Jonas. Em um desses encontros e, com um filho ainda com meses, Ilda volta a engravidar. Desta vez, da tão sonhada menina, que nasceria em maio de 1969 quando a família se escondia na cidade de Ribeirão Preto. Meses antes, durante a gravidez, fora planejada uma das ações mais ousadas da oposição à ditadura militar no Brasil, o seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick, que aconteceria em setembro daquele mesmo ano.
Ilda sabia que alguma coisa grande estava sendo preparada e que Virgilio viajaria. E nada mais. Nessa horas, voltava o medo de que fosse preso, morto, de não vê-lo mais.
Do seqüestro no Rio de Janeiro, o país inteiro soube pela televisão e pela rádio. Os seqüestradores sabiam da censura que vigorava nas redações dos meios de comunicação e entre as exigências que fizeram pela liberdade do embaixador estava a de divulgar a notícia do seqüestro.
A ação foi um sucesso. O embaixador foi libertado são e salvo depois de quatro dias de cativeiro, quando todas as exigências dos seqüestradores tinham sido cumpridas pelo governo militar. O marido de Ilda, comandante militar da ação, passou a ser naquele momento o homem mais procurado pela polícia no país.
Na volta do Rio, Virgilio passou em casa, contou para Ilda como tinha sido tudo e logo partiu para um apartamento onde ficaria escondido por um tempo. Ilda e as crianças iriam para outro endereço seguro. Ficariam escondidos em uma casa em São Vicente, no litoral paulista. Este foi o último encontro deles.
Dias depois Virgílio foi pego de surpresa dentro da casa onde ficava escondido. Um companheiro não tinha resistido às torturas e descobriu para a polícia os endereços onde se escondiam os seqüestradores de Elbrick.
Em São Vicente, os policiais também encontraram Ilda com três dos seus filhos. O próprio irmão caçula de Virgilio, o Chiquinho, conduziu a policia até lá. Hoje ela aceita a versão dele, mas continua achando, no fundo, no fundo, que foi um frouxo. O cunhado de Ilda participara de algumas ações armadas junto a Virgílio e ainda convalescia de uma ferida de bala em enfrentamento recente com a polícia. Depois da ferido, ele tinha sido levado para essa mesma casa na praia, um dos endereços de segurança do movimento, para ser operado. Segundo ele, só levou a policia até lá para ganhar tempo e que parassem de torturá-lo, pois tinha certeza que a casa estaria vazia. Mesmo assim, levou tempo para ela perdoar Chiquinho.
Ilda foi afastada das crianças e levada para a temida Operação Bandeirantes. Os filhos Vladimir, 8 anos, Virgílio, 6 anos e Isabel, de 4 meses, foram entregues ao Juizado de Menores, que os deixou em uma instituição que tomava conta de filhos de presos e crianças sem pais. Gregório, o caçula dos meninos, foi o único que não teve esse destino, pois estava na casa de um irmão de Ilda no momento da detenção.
Separada dos filhos, sem saber o destino que correriam as crianças e, principalmente, seu bebê de quatro meses, ela foi levada para o quartel da Operação Bandeirantes. Nessa altura já imaginava que Virgílio estaria preso também.
No quartel, Ilda foi torturada. Por ela, não sabemos detalhes, não conseguimos ter uma dimensão exata da dor física sentida. Conheço Ilda e sua família há mais de 15 anos e nunca entendi porque esta mulher cala tudo o que passou. Talvez porque ainda hoje seja duro lembrar dos horrores vividos nas mãos dos seus algozes ou porque criou uma couraça para esquecer de tudo e seguir adiante. Talvez ainda porque Ilda é um exagero de humildade, reservada demais, ou incorporou para sempre, como uma homenagem ao marido, a prática de saber das coisas e guardar os segredos.
Anos atrás, quando a família estava exilada em Cuba, perguntei à filha Isabel sobre as histórias da mãe. Ela me disse não saber de detalhes da prisão e que Ilda sempre desconversava sobre o assunto.
O choque elétrico foi o método que mais utilizaram nos interrogatórios. Queriam que Ilda contasse o que sabia do marido e suas atividades.
- Colocavam fios na cabeça e nas mãos e davam o choque – Conta hoje, quando quase consegue rir da maldade. Eu só dizia que não sabia de nada. Fiz eles acreditarem que eu era uma bobona, que não me inteirava de nada do que o Virgílio fazia. Esse era o papel que interpretava, o de uma mulher bem tonta.
Mas o que era a dor física comparada com às aplicadas à alma? Nada era pior do que a incerteza do destino do marido e dos filhos. Da Operação Bandeirantes foi transferida para o Dops, a sinistra Delegacia de Ordem Política e Social.
Lá, a tortura física foi substituída pela psicológica. Eram ameaças, tensão, carências. Foi lá que soube que Virgílio estava morto. Ninguém ficava muito tempo na Operação Bandeirantes. Depois de alguns dias, os prisioneiros eram enviados para o Dops, mas o Virgilio estava demorando em ser transferido. Ilda comentava com as colegas de cela que estava estranhando o fato. Existe entre os presos políticos um grande sentimento de solidariedade e através de um sistema de comunicação informal eles vão passando as notícias dos companheiros.
Um dia uma companheira de cela teve coragem de contar para Ilda o que já todos sabiam: seu marido tinha morrido depois de 12 horas de torturas, que tinha xingado os torturadores, que tinha ido para o pau-de-arara, que o tinham espancado até a morte. Outros presos foram conduzidos depois do Virgílio para a mesma sala e contam que os torturadores os intimidavam perguntando se queriam ter o mesmo fim do dele, enquanto mostravam as paredes ainda sujas de sangue.
Passaram-se 35 anos. Nem Ilda, nem mais ninguém, voltou a ver o marido. Ninguém viu o corpo, ninguém sabe onde foi parar o homem morto, ninguém descobriu onde foi enterrado.
- Por muitos anos, quando morava em Cuba, tive a esperança de que ele chegaria em qualquer momento, que receberia uma ligação dele ou dos companheiros avisando que estava vivo. Ainda não acredito que ele morreu. Hoje eu acho que talvez esteja morando em algum lugar, em um hospício ou na rua, sem saber quem é. Talvez tenha ficado doente depois de tantas torturas e anda por aí sem saber sua identidade.
No Dops, Ilda convenceu os militares que não tinha informação útil para eles e foi transferida para a ala feminina do presídio de Tiradentes, na capital paulista. Ali encontrou conhecidos e fez amigos e, depois de vários meses, autorizaram as visitas, primeiro da família e depois dos filhos.
As crianças estavam agora com familiares, que com muito esforço os acharam no Juizado de Menores e conseguiram uma autorização para tirá-los de lá. No momento que chegaram para pegar as crianças, os irmãos mais velhos tomavam conta da bebezinha que, doente com sintomas de desidratação, se recusava a tomar alimento. Pelas condições econômicas da família, eles distribuíram os filhos de Ilda de forma tal que cada tio tomara conta de uma criança.
No presídio não havia tortura, mas esse fantasma não se afastava para sempre. Em qualquer momento os presos políticos eram levados para depor sobre fatos descobertos ou para fazer acareação com um companheiro recém-capturado e interrogado sob tortura.
Depois de um ano de prisão, ela foi libertada com o estigma de presa política e subversiva. Ilda reencontrou sua família, reuniu seus filhos e tentou recomeçar a vida, agora sozinha. Precisava trabalhar para sustentar os filhos, mas ninguém queria dar emprego para ela. Arrumou quatro serviços de costureira, que era o que sabia fazer. De todos foi demitida depois de um mês ou dois. Ela era vigiada e o percebia. Apareciam desconhecidos no seu caminho, sempre jogando conversa fora. A situação financeira da viúva era difícil. A organização sabia disso e enviava pessoas “limpas” para visitá-la e entregar algum dinheiro que ajudasse no sustento.
Ilda foi morar em Poá, uma cidadezinha pacata fora da capital paulista. Lá, um outro irmão do Virgílio, o Ferrerinha, começava a ganhar dinheiro com o negócio da sucata e comprava, ainda muito baratos, terrenos cobertos de mato. Ele cedeu um terreninho para Ilda construir uma casa. Com o dinheiro e os braços dos companheiros do partido, conseguiu terminar uma casa simples de quarto, cozinha e banheiro, onde morava com a sogra, vinda do Nordeste para ajudá-la com as quatro crianças.
Foi nessa época que o partido ofereceu-lhe sair do país. A sugestão era Cuba, país socialista onde ela poderia dar uma melhor condição para os filhos. Virgílio tinha contado muito da sua viagem para Cuba, ele admirava o sistema local e chegara a dizer que se alguma coisa acontecesse com ele que levasse as crianças para aquele país. Ilda não hesitou, disse que queria ir. Agora era só esperar o partido preparar tudo.
Ilda contou tudo para a sogra e recebeu seu apoio. Para a família não era recomendável contar, além do que ela não teria coragem de revelar para sua mãe idosa que sairia do Brasil com destino a um país distante e sem previsão de volta.
Quando chegou o dia da viagem, foi à casa materna com as crianças, como fazia todos os domingos, e despediu-se da mãe e dos irmãos com um “tchau, até semana que vem”. Nesse dia começou uma separação que durou 15 anos, até a decretação da anistia política no Brasil, quando todos os exilados políticos puderam regressar.
Com seus quatro filhos e duas malas, Ilda saiu de ônibus de São Paulo com destino a Argentina, via Paraguai. De Buenos Aires seguiu, também de ônibus, para o Chile de Salvador Allende. No Chile foi morar numa pensão onde paravam os exilados brasileiros recém-chegados. A casa de dona Conceição, como era conhecida por todos, era mantida com contribuições dos companheiros que levavam mais tempo no país. Enquanto esperava o contato de Havana, Ilda escreveu uma carta de desculpas para a família, explicando sua decisão de sair do Brasil. Decisão que, aliás, nunca foi entendida.
Ilda e seus filhos foram para Cuba, onde receberam o apoio governamental. A família recebeu uma moradia, Ilda arrumou emprego e os quatro filhos terminaram a faculdade pelo sistema gratuito de educação local. Em 1985, o governo cubano financiou uma viagem de visita a Cuba para a mãe de Virgílio, que pôde reencontrar os netos e a nora. Um ano depois, o governo cubano pagou outra viagem de reencontro familiar. Desta vez para Ilda, que depois de 15 anos afastada da família, voltou ao Brasil. Aos poucos os filhos, segundo iam terminando a faculdade, retornavam para o Brasil, que já vivia a volta da democracia. A última a voltar para seu país natal foi Isabel, a filha caçula, que regressou em 1994. Por outra ironia do destino, ela, que deixara seu país com um ano de idade, retornava agora com uma filha, também de um ano, nascida no exílio.

* Perfil realizado pelo cubano José Alberto Gutierrez, ex-genro de Ilda, aluno do período noturno da disciplina de Jornalismo Literário ministrada no campus Morumbi no primeiro semestre de 2004.