O padre que recicla vidas humanas

José Carlos Spínola, paulista do bairro do Butantã, mostra em sua história que é possível alcançar a realização pessoal melhorando a vida das pessoas

Nascido em 14 de outubro de 1957, José Carlos Spínola, o quinto de nove filhos de portugueses que imigraram ao Brasil na década de 50 com o sonho de proporcionar maior conforto para a família, tem em sua infância pobre o início de uma vida de busca pela realização como ser humano.
José Carlos viveu uma vida absolutamente igual a qualquer garoto da mesma idade. Estudou em dois colégios públicos durante o ensino médio, o Afonso César Siqueira e o Virgílio Rodrigues Alves, ambos na zona oeste da capital paulista, berço e local da história desse cidadão. Era obrigado pelos pais a freqüentar a igreja regularmente, a contra-gosto, por motivos que só conseguiria explicar sete anos depois: a instituição pregava uma fé vazia de conteúdo e de doutrina moralista, que não acrescentava nada aos seus seguidores.
Ainda aos 16, começa a trabalhar com seus pais, distribuindo doces Tostines e Kids para padarias, supermercados e vendas. Três anos depois presta vestibular para o curso de Ciências Sociais, em São Paulo. Passa, mas nem inicia o curso. Resolve ir trabalhar com venda de ouro, jóias e antiguidades, vendendo no boca-a-boca, para amigos e interessados.
Os novos rumos de sua vida não estavam lhe trazendo apenas um auto-sustento financeiro. Ganhando muito bem, José Carlos, angustiado por não estar crescendo intelectualmente nem como ser humano, começa a se questionar sobre como poderia ser útil, ajudando o mundo a ser mais fraterno, com menos diferenças sociais. Questionamento este que se tornaria o maior objetivo e a maior realização da vida de nosso herói.
Em um sábado à tarde, estava em sua casa, na rua Emiliano Cardoso de Mello, no bairro do Butantã, quando um primo, seminarista fanático, freqüentador assíduo de igrejas, e exemplo de pessoa para toda a família, liga para sua casa pedindo ajuda, pois estava com dois pneus furados e não tinha como chegar ao município de Embú das Artes para exercer seu trabalho junto a paróquia local. Com a ausência de seu irmão, Fernando, mais amigo do seminarista, José Carlos resolve pegar seu veículo e ir ao encontro do parente.
Ao chegarem à igreja, são recebidos pelo padre Luís Antônio de Oliveira de maneira muito acolhedora. Apresentado a todos da paróquia, sente-se muito confortável. Ao saírem para começar o trabalho de visitas a comunidades muito pobres, o garoto começa a enxergar o papel da igreja com outros olhos. A visão da verdadeira miséria bem em sua frente e o empenho do religioso em usar a fé para melhorar as condições de vida das pessoas, tornando suas vidas mais dignas, foram peças-chave para os próximos passos da vida desse homem.
Depois desse dia José Carlos decide, por conta própria, continuar exercendo esse papel junto às comunidades carentes. Esse trabalho o fez tomar a decisão de tornar-se padre com o objetivo de ajudar pessoas que necessitam. Buscar o exercício pleno da cidadania, não apenas aplicando um assistencialismo, dando comida e abrigo, mas conquistando a sobrevivência digna desses homens, transformou-se em seu sonho, em seu objetivo, tornou-se sua busca pela realização tão esperada.
Após um ano refletindo se era aquilo mesmo que desejava para sua vida, José Carlos se convence de que é isso mesmo que quer. Inicia um curso de Filosofia na Unifae (Faculdades Associadas de Ensino), na Avenida Nazaré, no bairro do Ipiranga. Foram três anos de mescla entre a faculdade na parte da manhã, trabalho com os pais à tarde e ações sociais à noite e nos fins de semana.
Ao concluir o primeiro requisito para exercer o papel de padre, a Filosofia, o homem de 27 anos agora, é chamado pelo bispo Fernando Penteado a fazer o curso de Teologia, na Faculdade Nossa Senhora de Assunção, na mesma Avenida Nazaré, adentrando ainda ao seminário, morando na Casa da Teologia.
Finalizando essa etapa, José Carlos é indicado pelo bispo para ser o responsável da paróquia São Patrício, em Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo, com intenção de exercer seu papel em comunidades próximas como Embu, Capão e Piraporinha. Em seu primeiro ano de trabalho na região cria o Centro Social Santo Dias da Silva, uma instituição com o objetivo de tirar crianças e adolescentes das ruas, prevenindo-os contra o uso das drogas. Uma padaria e uma marcenaria foram abertas, oferecendo cursos de panificação e fabricação de brinquedos. Além disso, aulas de capoeira, balé e reforço escolar eram oferecidos aos internos.
Na mesma época ele termina seu mestrado de prevenção às drogas na Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo.
Após seis anos nessa paróquia, José Carlos é transferido para a Comunidade São João Batista, no Jardim Rizzo, região do Butantã. Logo em sua chegada o padre põe em funcionamento uma rádio comunitária, que tem conteúdo totalmente produzido com a participação da comunidade. Com um ano de vida a rádio é invadida pela polícia, todos os equipamentos são confiscados e José Carlos é convidado a ir à delegacia, onde sofre processo por uso indevido dos meios de comunicação. É obrigado a comparecer de dois em dois meses à delegacia, além de ter que pedir autorização toda vez que deixasse a comarca.
O padre é indicado para atuar na paróquia São João Maria Vianney, na praça Cornélia, bairro da Pompéia, em São Paulo, pois o bispo estava preocupado com a população de rua que ali vivia e gostaria que José Carlos exercesse o mesmo papel das outras comunidades, ou seja, que acolhesse essa população refém do álcool e das drogas.
Olhar que demonstra muita sabedoria e serenidade, e uma forma de falar que passa segurança, são algumas das características que podem ser vistas em José Carlos e que com certeza foram utilizadas no primeiro ano de seu trabalho na praça Cornélia, junto aos moradores de rua. Um ano de busca por ganhar a confiança, 12 meses tentando aproximação, 365 dias de muita observação.
O padre consegue, usando a receptividade juntamente com a paciência para ouvi-los e não passar um sermão, conquistar a confiança de Rogério e Maria, dois viciados em crack, maconha, cocaína e principalmente álcool, que se tornariam seus aliados na tentativa de melhorar o modo de vida de todos na praça.
Em cerca de três anos o padre consegue confiabilidade perante aos sem-teto que viviam na Cornélia. Com isso decide comprar a casa ao lado da paróquia, criando a Casa São Lázaro, com o objetivo inicial de dar apoio aos necessitados, oferecendo-lhes almoço, jantar, banho, corte de cabelo e até a possibilidade de tirar seus documentos. Os mendigos vinham, faziam o que precisavam e depois voltavam para a praça.
Com o passar do tempo, José Carlos percebe que somente aquilo não bastava. Apenas dar conforto não estava possibilitando àquelas pessoas se tornarem verdadeiros cidadãos. Ele começa a pesquisar com todos que passavam pelo São Lázaro com o que gostariam de trabalhar se tivessem oportunidade. Todos davam a mesma resposta: tenho experiência em catar latinha, papelão e garrafas, gostaria de trabalhar com isso.
Ouvindo-os José Carlos cria a organização não governamental Reciclazaro (www.reciclazaro.com.br), com a meta de possibilitar uma renda para que os participantes do programa pudessem alugar uma casa ou um quarto para dormir.
Dois caminhões são colocados para recolher lata, vidro, plástico e jornal, levando-os para um galpão no Butantã, onde são separados, prensados e amarrados pelos moradores de rua. Cada um chega a ganhar de 250 a 450 reais por mês. A única condição para os interessados entrarem no programa é não usarem drogas. Por isso, o padre incorporou uma clínica para dependentes químicos à ONG, que permite que eventuais usuários possam ser tratados.
José Carlos, hoje com 47 anos, cabelos e barba totalmente brancos, muito bem fisicamente, se diz realizado porque, além de ajudar a natureza e preocupar-se com a ecologia, está reciclando a vida humana, ou seja, ele realmente conseguiu dar uma contribuição concreta para a melhoria, talvez não do planeta, mais com certeza de muitas pessoas da comunidade.


Perfil realizado por Rodrigo Figliola (rfigliola@hotmail.com), Alexandra da Silva, Andréa Morais, Camila Segundo e René Sartori, alunos do período diurno da disciplina de Jornalismo Literário ministrada no campus Morumbi no primeiro semestre de 2005.