Uma vida dedicada aos livros e ao meio ambiente

Nascida no interior paulista, professora supera a morte precoce do pai e torna-se uma defensora do meio ambiente. Aos 67 anos, continua ativa dando aulas, participando de trabalhos voluntários e curtindo os netos.

Ivanisa Alcântara nasceu numa pequena cidade do interior de São Paulo, na divisa com Minas Gerais, chamada São Sebastião da Grama. É a terceira filha de seus pais, Saint’ Clair Alcântara e Chrizeida Jannell Pitta Alcântara - as duas primeiras crianças morreram no parto. Para ela, a mãe não fez enxoval porque havia a crença de que a mulher teria sorte no parto se não houvesse feito nenhuma roupa para o bebê. Assim, sobreviveu e seu pai fez uma festa para a cidade inteira.
Um ano antes, uma amiga de sua mãe havia morrido no parto e a família deu o bebê para os seus pais. Seu nome era Ivan e seu pai achou interessante chamá-la de Ivanisa porque significava que a felicidade agora estava completa. O ano era de 1938, o dia, primeiro de novembro. Na ocasião, seu pai escreveu ao seu avô contando do nascimento e dizendo que sua neta tinha testa larga de menina inteligente e mãos de dedos longos e finos. Ele tinha certeza de que seria moça fina, delicada e culta. Seu avô respondeu dizendo que o dia primeiro de novembro era de todos os santos e mandou um pequeno texto dedicado para ela.

“Hoje, dia 1 de novembro,
na cidade de São Sebastião da Grama,
para alegria de seus pais, chegou uma menina,
a quem foi dado o belo nome de Ivanisa.
Cada criança que aporta a terra
Vem acompanhada de um anjo.
Tu, o Ivanisa, tiveste a supremacia,
Chegaste a terra acompanhada de todos os anjos do céu”.

Pensa que herdou o gosto pelos livros de seu avô que era alfaiate, mas escrevia novelas para o rádio, poemas, palestras sobre espiritismo e muitas histórias. De seu pai, acredita que havia herdado o amor pela natureza. Parecia que a vida seria um mar de rosas, pois o pai tinha muitos negócios e sua mãe não precisava trabalhar e se dedicava somente a cuidar dos filhos.
Em junho de 1940, nasceu meu irmão, que recebeu o nome de Ivaldo. O pai era dono de um hotel, o único da cidade, onde moravam. Haviam muitos empregados e cada um deles tinha uma babá.
Seu pai fazia planos para mudar-se para São Paulo, onde havia boas escolas para seus filhos e ele queria que sua mãe, que se casou com 17 anos, também estudasse. Em uma carta ao meu avô, ele diz: “Ao menos contadora, minha mulher tem que ser.”
Saint’ Clair Alcântara era uma pessoa de mentalidade adiantada. Não era freqüente naquela época que os homens incentivassem suas mulheres a estudar. Não era comum também que os homens cuidassem dos filhos, mas, quando chegava do trabalho no final da tarde, ele levava as crianças para das uma volta na jardineira, espécie de ônibus que usava para transportar professoras e caixeiros viajantes que se hospedavam no hotel. Antes de colocar o pijama para dormir, ficavam em pé numa grande bacia e jogava água em suas cabeças com uma caneca, enquanto cantava os sucessos do rádio naquele tempo.
Com dois anos, a menina Ivanisa sabia todas as músicas de cor e ele pedia para cantar para os hóspedes as longas canções. “Eu cantava em cima da grande mesa de jantar e recebia aplausos e tostões”. A sua babá, que morreu faz poucos anos, contava que o pai tinha adoração por ela. Ele a levava para ver os cavalos, as árvores, os pássaros, ensinava a brincar com os cachorros e com os gatos e explicava que ela devia amar tudo o que fosse vivo, cuidar sempre da natureza.
Em 1941, com três anos, todos os sonhos foram destruídos. Saint’ Clair foi picado por um carrapato venenoso e depois de 25 dias de febre, morreu aos 33 anos, sem nunca ter tido uma gripe. Ele havia prometido que se deixasse de usar a chupeta, daria a ela um tico-tico, uma pequena bicicleta. Antes de fechar os olhos, pediu ao meu tio, seu irmão, que fosse a São João da Boa Vista comprar a bicicleta e uma máquina de costura para ela. Ele sabia que não estaria mais por perto para ajudá-la e que talvez precisasse ter um ofício.
Depois da morte do seu pai, a sua mãe descobriu que todos os negócios eram acertados no fio do bigode e que não havia papel nenhum provando qual era a parte do seu marido. O avô não quis discutir com os sócios do pai porque não era honroso brigar e muito menos contratar um advogado. Disse para a mãe que na nesta família nunca tinha havido necessidade de recorrer à justiça. Desta forma, Dona Chrizeida voltou para a casa do pai com três filhos, sem diploma, sem dinheiro e sem marido.
Com cinco anos de idade, Ivanisa foi para o grupo escolar do bairro onde a tia era diretora e ela podia ficar como ouvinte. Em um semestre, aprendeu a ler e a escrever e um novo mundo se abriu para ela. “Eu lia tudo o que me caía nas mãos, inclusive a folha de jornal onde o açougueiro embrulhava a carne. Eu pedia para a minha vó passar a ferro e lia, dobrando cuidadosamente para guardar”. A família Alcântara é presbiteriana e ela lia a bíblia e as revistinhas de ensinamentos da igreja, mas não tinha nenhum livro de história. Quando vinha alguma visita importante da igreja, Ivanisa escrevia o discurso de saudação e tinha muito orgulho de ler na frente da congregação reunida.
Sonhava em ser professora de português, mas sabia que talvez não pudesse estudar. Um dia, recebeu de sua mãe uma notícia que iria mudar a vida. “Eu tinha ganho uma bolsa de estudos do Colégio Mackenzie, onde ela trabalhava cuidando da cantina do curso colegial”. Naquele tempo, o Mackenzie era um dos melhores colégios de São Paulo, competindo com as escolas famosas. Passava o dia todo lá, porque devia trabalhar durante três horas diariamente. Por sorte ou por destino, como disse Ivanisa, foi designada para trabalhar na biblioteca. “No começo, eu somente apertava um pequeno aparelho para contar a entrada de alunos na biblioteca, ficando numa pequena mesa perto da porta. Quando os alunos saiam, deviam me mostrar se os livros que estavam levando estavam carimbados pela bibliotecária”.
Aos poucos, foi aprendendo outras coisas e, com 11 anos sabia o lugar da maioria dos livros naquela bela biblioteca de três andares. Ela trabalhava de manhã, almoçava no internato, e ia para a escola à tarde. Na biblioteca tinha uma família composta pela diretora e pelas funcionárias, que ajudava com os trabalhos escolares, pois morava longe do colégio, na Vila Mariana. Fazia muitas lições no ônibus e no bonde. Ia com a sua mãe, de madrugada, para preparar as coisas na cantina, e voltava sozinha à tarde. Aos 13 anos, começou a arranjar alunos particulares no fim da tarde e à noite para ganhar algum dinheiro, preparando as crianças para o exame de admissão ao ginásio, então obrigatório.
No entanto, uma vez mais esta vida iria virar de cabeça para baixo. Após o falecimento do marido, sua mãe Chrizeida casou-se com um homem que se revelou muito violento com elas após o casamento. Foram cinco anos de terror e ela precisou sair de casa para que sua mãe pudesse criar o filho que tivera com ele. Conseguiu continuar com seus estudos até o segundo ano do colegial no Mackenzie e depois foi trabalhar em tempo integral numa empresa americana, sabendo inglês e português não teve dificuldade para arranjar emprego.
Nessa empresa, conheceu um homem, Fábio Próspero, com quem se casou aos 18 anos. Fez um concurso público e foi trabalhar como escrituraria no IPESP – Instituto de Previdência do Estado de São Paulo. Lá, conseguiu comprar sua primeira casa porque havia uma linha de financiamento especial para funcionários.
Depois de alguns anos, com três filhos, ainda sonhava com a faculdade de Letras. Decidiu completar o colegial fazendo supletivo e tentar o vestibular. Na primeira vez que tentou não entrou na USP, onde queria e podia estudar. Seu marido não era contra mas, não podia pagar uma faculdade particular. Na segunda vez, entrou em Letras Clássicas e cursou Português/Latim. A faculdade tinha quatro anos de duração, mas levou sete anos para completar o curso. Cada vez que um filho ficava doente ou que o trabalho apertava, trancava.
No último ano, fez concurso público para professor de segundo grau e passou em quinto lugar. Eram cinco mil candidatos para 500 vagas. Ao mesmo tempo, uma cunhada que é arquiteta e trabalhava no Palácio do Governo, conseguiu um estágio para ela na área de editoração. Trabalhava uma parte do dia no Palácio e à noite dava aulas na periferia de São Paulo. Teve a sorte de trabalhar com uma chefe que se encantou com sua dedicação, solicitou o seu afastamento da escola pública e a contratou para chefiar uma equipe de edição dos textos produzidos pelos técnicos. Sob a proteção e incentivo desta mulher, cresceu profissionalmente.
Quando alguns anos mais tarde sua chefe se mudou para Nova Iorque acompanhando o marido, Ivanisa já andava com suas próprias pernas. O Secretário do Planejamento, seu chefe, foi convidado para ser Secretário do Meio Ambiente e a levou com ele. Um novo e maravilhoso mundo se abriu para ela.
Ele era um editor frustrado e realizou seu sonho elaborando um grande projeto de edição de publicações sobre meio ambiente. Fazia a revisão de todos os textos e a normalização técnica. Havia uma produtora gráfica muito competente, de quem ficou muito amiga e que a ensinou muitas coisas. Exerceu essa função durante cinco anos e, em 1991, aos 53 anos, foi convidada para ser gerente do Parque Ecológico Monsenhor Emilio Jose Salim, em Campinas.
Mudou-se para Campinas e outro mundo se descortinou diante dos seus olhos. O parque tinha um casarão da época do café, restaurado e transformado em museu ambiental e um milhão de metros quadrados de jardins projetados pelo Burle Marx. O CIPAM – Centro Integrado de Percepção Ambiental – deveria transformar-se em um pólo irradiador de conhecimentos sobre meio ambiente. Chegou a receber três mil estudantes por mês trabalhando temas como o lixo, a poluição, o clima, as águas, a história econômica da região e a interferência no meio ambiente. Para transmitir aos estudantes da região os conhecimentos sobre meio ambiente.
Foi um tempo de muita realização profissional e de adquirir novos conhecimentos. Trabalhou com escolas, universidades, ONGs - Organizações Não Governamentais, associações beneficentes, enfim, todos os tipos de instituições. Somente saiu do parque para se aposentar, porque já tinha cumprido o seu tempo há alguns anos e também porque o novo governo cortou todas as verbas do parque, tendo pensado, inclusive em fechá-lo.
Após este período, ela estava indissoluvelmente ligada às questões ambientais. Continuou fazendo revisão em teses de meio ambiente e de outros assuntos também. Participou da edição de alguns livros elaborados pelo pessoal da Reserva da Biosfera e sempre que é solicitada realiza tais trabalhos. Sabe que as questões de meio ambiente hoje são planetárias, mas que no Brasil, os problemas são muito sérias. Somos um país muito grande e com graves problemas políticos que interferem na preservação ambiental.
Considera da maior importância a participação das ONGs e, mais recentemente, das OSCIPS – Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. Pensa que, somente com o engajamento de toda a sociedade, poderemos vencer essa luta pela preservação das imensas riquezas ambientais que o Brasil possui. Moradora em Campinas e casada há uns seis anos com um professor de música da UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, Eduardo Anderson Duffles Andrade, dá algumas aulas particulares de português e inglês e está interessada em estudar as ervas medicinais da nossa flora e suas aplicações. Tem lido muito sobre isto e freqüentado encontros e seminários. Faz trabalho voluntário em um hospital de doentes mentais e ajuda cuidar dos mais velhos que tem na sua família. Procura ajudar seus netos transmitindo a eles seu amor pelo estudo e pela natureza. Somente agora está aprendendo a nadar por causa da artrose. Mas, muitas vezes pensa em fazer algo novo, interessante. Nunca abandonou a fé em Deus, embora não freqüente mais a igreja presbiteriana. Então, pensa que Deus ainda reserva grandes surpresas. Considera-se muito abençoada porque todo o sofrimento não a deixou amarga nem ressentida. “Sou uma velha cheia de lembranças”.

* Perfil realizado por Sharon Stefanie Prosperi, aluna do período diurno da disciplina de Jornalismo Literário ministrada no campus Morumbi no primeiro semestre de 2005. Além de futura jornalista, Sharon iniciou recentemente o curso de Direito.