Filósofa de balcão

A história de uma mulher de idéias que lutou para se graduar, mas em vez de optar pelas cátedras de ensino escolheu como missão de vida zelar pelos entes queridos*


Ninguém imagina que por trás do balcão de uma loja de materiais elétricos localizada na zona sul de São Paulo, trabalha a filósofa Cleide Lopes, 56 anos. Filha de pai espanhol, João Reis Lopes, e mãe italiana, Graziela Francês Lopes, na infância Cleide morava num bairro de classe média de São Paulo, o Itaim Bibi. Sua casa tinha um quintal grande, onde costumava brincar com seus primos. Seus pais não freqüentaram a faculdade, mas completaram o 2° grau completo. Sua vida social não era agitada, não saía com freqüência e não teve namorados.
Teve que largar os estudos e começou a trabalhar cedo como balconista de loja. A vocação falou mais alto e logo retomou os estudos e concluiu o primeiro grau. Dos primos, que sempre estudaram em colégios particulares, Cleide aproveitou os livros didáticos para concluir o segundo grau. O curioso é que eles entraram em faculdades privadas e ela na USP, a universidade pública mais concorrida do Estado de São Paulo.
Ingressou na faculdade de Ciências Humanas para cursar filosofia, sua segunda opção de estudo, pois não havia conseguido vaga para sociologia. “Ao se matricular para filosofia você ganhava o rótulo de comunista. Todo mundo achava que nós éramos radicais”, conta Cleide. Ela explica que por volta de 1971 a noção geral era de que os estudantes de filosofia carregavam sempre o livro de Karl Marx. Cheia de humor e vitalidade, diz que estudava a obra do autor “oxiológicamente”, ou seja, com o livro debaixo das axilas. Foram cinco os anos em que Cleide fez diversos cursos. Quando chegou a hora de fazer licenciatura, optou para cursá-la com a turma de psicologia que, de acordo com ela, a acharam metida besta. Ela diz que esta foi uma das melhores épocas da sua vida, quando trabalhava de dia em uma loja, que conseguiu montar através da venda de um carro, estudava na USP à noite e após a aula ia direto para o Rei das Batidas –bar localizado perto do campus.
Ao ser perguntada se a repressão e a censura não dificultavam tudo, ela comenta: “Você não podia falar nada, mas sempre se discutia uma coisa por debaixo dos panos. Era uma música que saía, uma letra meio subentendida...”.
Com a carteirinha de professora do Ministério de Educação e Cultura (MEC), e sua licenciatura conquistada, em 1975 ela consegue uma escola na periferia de São Paulo para ensinar filosofia. Cleide disse que ao entrar no MEC, o rapaz olhou para ela e explicou que a última professora que foi para lá teve seu carro danificado e os pneus furados. Esta não foi mais de três vezes. Mesmo assim, ela aceita a escola, pois “para isto que eu estudei mesmo!”. Cleide continua dizendo que ao chegar no período noturno a classe, cheia de adultos, dava medo, mas após algumas aulas ela se deu bem com a turma. Sem dinheiro para pagar a gasolina, teve de abandonar as aulas e vender sua loja no centro da cidade.
Após essa fase, Cleide começa a procurar outros rumos para a sua vida. Decide fazer oceanografia na USP. Fez parte da primeira turma, porém não terminou porque precisava se especializar e não tinha dinheiro e nem tempo para isso. Ela então abre outra lojinha. Cntudo, conseguiu ingressar na pós-graduação da PUC (Pontifícia Universidade Católica), tendo como sua tese trabalho sobre Jean Jacques Rousseau, seu filósofo preferido. “Ele diz que todos nascem da mesma forma. Quando o ser humano olhou para o lado e viu que podia cercar um terreno, gerou propriedade privada. Quando viu que tinha mais força que o outro e que podia armazenar alimento, gerou o acúmulo de bens, e aí foi a origem da desigualdade social entre os homens”.
Cleide cita vários exemplos de amigos e colegas altamente qualificados, porém sem condição financeira para dedicar-se integralmente aos estudos, forçados a ir para o sub-emprego, ou seja, mentes brilhantes atrás de balcões, trabalhando em bancos, enfim, qualquer atividade profissional para garantir o pão de cada dia. “Por isso costumo dizer que a vida é um jogo de xadrez, você é uma peça, eu outra peça, não somos nos que mexemos no tabuleiro, alguma coisa nos mexe, certo? Há pessoas que têm capacidades mínimas e ganham fortunas. Eu costumo dizer que esse fator que leva as pessoas a ter sucesso na vida é sorte”.
Batalhadora, sustenta praticamente três famílias e ainda tem tempo para a diversão aos domingos, passeia no parque e sempre está com uma alegria que acaba contagiando todos ao seu redor. Apesar de não ser grande, ficou conhecida por Big porque está sempre de braços sempre abertos e tem um grande coração.
Marcio, 23 anos, é sobrinho adotivo da Big. Ele a conheceu há três anos e, desde então, trabalha com ela. Diz que ela é uma pessoa justa, que quer as coisas certas no lugar certo e na hora certa. Roberto Tadeu Lopes, 52 anos, irmão da Big, é casado e tem três filhos. Trabalha com ela desde os 20 anos e comenta que isso faz com que às vezes o lado profissional se confunda com o pessoal.
Roberto Tadeu, 26 anos é um dos seus sobrinhos, filho do seu irmão mais velho. Ele conta com uma boa risada que trabalhar com ela há dez anos é estressante, porque ela cobra muito. Sempre a primeira a chegar e a última a sair. “Fora do trabalho ela é uma tia maravilhosa, tem um coração muito bom, sempre nos aconselhou a não beber, não fumar, não usar drogas”, relata Betinho.
As drogas sempre tiveram na vida de Cleide, mesmo que indiretamente. Desde seus tempos de faculdade, já se falava muito em maconha, mas o que a maioria dos estudantes gostava mesmo era tomar uma cervejinha gelada. Durante 15 anos de sua vida, Cleide dedicou-se a um dos seus cinco sobrinhos, que ao entrar na faculdade de Odontologia começou a beber e a fumar maconha. Seu nome era Adalto Lopes, que morreu de cirrose aos 39 anos de idade.
“Eu entrava muito na favela. Já era conhecida como ‘Tia do Adalto’”. Não foram poucas às vezes que Cleide, por amor, enfrentou as barras da perigosa periferia da cidade de São Paulo. Ela relata que ao sair de uma boca de drogas perguntou a ele o que estava fazendo lá? Se teria ido para comprar entorpecentes. Ele negou imediatamente, pois estava lá somente para comprar pão na padaria do bairro. A casa dele era ao lado da Santa Marcelina, padaria de bairro nobre em São Paulo. De acordo com especialistas, Adauto sofria de Psicose Maníaca Depressiva (PMD), síndrome hoje conhecida como bipolar afetiva. Ela não acreditou no diagnóstico.
Com o carro parado no trânsito na Rebouças, uma das principais avenidas de São Paulo, Cleide se exaltou com seu sobrinho, pois sabia que ele usava drogas, porém este negava até a última instância. Assim, Cleide obrigou o rapaz a entrar no consultório médico. O profissional queria chamar a policia, alegando que Cleide era louca. Passaram-se dois meses da consulta e Adalto confessou que era dependente químico para o médico.
“Você consegue controlar uma criança até seus doze anos, depois disso a influência dos amigos é grande. Mas uma coisa que aprendi nas minhas reuniões do N.A (Narcóticos Anônimos) foi que se você é dependente, você procura dependente, se você é da farra, você procura a farra, se você é alcoólatra, procura alcoólatra. Semelhante, procura semelhante.”.
Big escreveu um livro que conta a sua experiência com o seu sobrinho: Drogas: o desabafo, a revolta e o alerta. “A revolta é o que a gente sente e vai por pra fora, o desabafo é o que eu estou fazendo no meu depoimento no livro e o alerta é para as pessoas abrirem os olhos com quem têm em casa e o que está acontecendo com seus filhos. Foi uma época que ficou pra trás, mas que esta muito viva na lembrança”, desabafa.
Ela conta que nunca teve filhos, pois sempre viveu em função de terceiros. “Quando comecei a viver um pouco a vida e pensar em mim, a fase de ter uma família já havia passado”. Cleide diz que faria tudo de novo, pois acha que não existe grande diferença entre ter um filho biológico e criar um filho. “Eu me julgo mãe de todos os meus sobrinhos, inclusive dos meus pais e irmão. Todo domingo tem pelo menos meia dúzia de sobrinhos andando de bicicleta no parque do Ibirapuera, “para mim, criança e cachorro não traz problemas, vocês já perceberam que adulto só fala da empregada, da falta de dinheiro. Criança só fala besteira, é uma alegria só!”.
Hoje ela pretende fazer um curso de decoração de interiores, só falta o tempo. Tem a intenção de um projeto para crianças, como um livro infantil, mas só está na intenção. Além é claro da vontade de trabalhar com as drogas em prol da juventude, onde diz já ter feito alguns trabalhos em lugares apropriados mas não para crianças.
Cleide é católica e tem muita fé. “Eu sei que Deus existe no céu ou em algum lugar, acredito que há mais mistérios entre o céu e a terra do que possa deslumbrar nossa vã filosofia”, termina a entrevista citando uma frase de Shakespeare.

* Perfil realizado pelos alunos Christiane Macaneiro, Bianca Fusco, Diana Bastos, Thiago Moreira, Marcio Papi, Gabriela Isgroi, Mariano Gabriel e Caio Barboza, do período noturno da disciplina Fontes e Reportagens Jornalísticas, no campus Morumbi, no segundo semestre de 2004.