O anjo ruivo

A história de uma mulher que soube domar um passado triste e transformar sua trajetória num exemplo de vida*

“E quem disse que a vida tem que ser justa?”. Dito assim, parece conselho de um amargurado. Mas quando as palavras saem da boca daquela mulher de semblante vivo e cabelos cor de fogo, a frase é um alerta. “Viva bem a vida, não importando a forma com que ela se apresente a você”. São, na verdade, pensamentos de alguém experiente. E assim, com humor inusitado, palavras inspiradas e alguns tragos no cigarro, ela dá paz a quem a procura.
Rejane Alves, 40 anos. Olhos negros, brilhantes, espertos, profundos. Baixa, magra, seios fartos. Costuma parodiar Chico Buarque. “Quando nasci, veio um anjo safado, um chato de um querubim, e decretou que eu tava predestinado a ser errado assim”. Recebe com felicidade os amigos que a procuram em sua casa, lugar que ela apelidou, com ironia e algum orgulho, de muro das lamentações.
Das recordações mais remotas, lembra-se de, aos três anos de idade, sair chacoalhando dentro de um caminhão rumo ao novo lar. A saber, uma casa pequenina, não no alto da colina, muito menos onde cantava o sabiá. Tratava-se de um bairro chamado Vila Remo, distante três quilômetros do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, hoje famoso por ser violento. Já naquela época fazia juz à fama.
O maior luxo que tinham era luz elétrica. A água era retirada de um poço, “muito bem localizado dentro de casa, entre a cozinha e a sala”, lembra, sempre bem-humorada. No que se trata de conforto material, o que hoje é comum para a maioria dos mortais, ela só teve depois dos 30 anos, incluindo aí um telefone.
O bairro civilizado mais próximo era alcançado depois de quase uma hora de muito aperto dentro dos coletivos, sempre imundos. Viveu neste lugar durante 22 anos. Ainda na infância, seu primeiro amor foi correspondido. Alexandre, “um garotinho lindo de olhos azuis”. Foi morto pela polícia na adolescência. Não fez mais amigos depois que começou a compreender as leis do lugar. Outros colegas de escola tiveram destino igualmente trágico. Maurício, João, André – todos foram mortos.
Durante este período, era uma verdadeira aventura viajar de ônibus – foi bolinada, agredida fisicamente, furtada. Como se não bastasse, era preciso estar na fila do “maldito” às três da madrugada, para conseguir entrar no “buzu” por volta das sete horas. Depois de um exaustivo dia de trabalho, a volta durava pelo menos três horas. “Era incrível a dificuldade para enfiar um corpo de 1,60m e menos de 50kg num espaço exíguo, dividido por centenas de proletários ávidos com a volta ao lar-doce-lar”.
Viu muita briga de sangue, alguns cadáveres pelas ruas, para ela “tudo muito natural”. Achava que o mundo inteiro era daquele jeito. Recorda-se dos meigos sentimentos da época e jura que só não se tornou uma assassina porque faltou coragem. “A vontade era de esfacelar com as próprias mãos uma série incontável de pessoas. Mas percebi que a violência é como o sol: agride se a exposição for grande. Saia debaixo que o risco acaba ou diminui”.
Sua família era formada por quatro pessoas, pai, mãe, irmão e ela própria - todos pobres. “Ensaiamos durante anos a fio formarmos um trio a contragosto. “Passei a minha infância inteira e parte da adolescência com um adeus na ponta da língua para minha progenitora - cidadã que sofria de séria e longa depressão - e que quase todo o tempo nos oprimia com a visão do fim”, relembra, emocionada. Quando a mãe se internava, ficavam ela e o único irmão, mais velho, aos cuidados de um avô materno não muito afeito a crianças. “Ele nos trancafiava num quarto, desrosqueava a lâmpada e nos abandonava por horas seguidas, presos na escuridão e no silêncio”.
Foi ali nas trevas daquele quarto que ela aprendeu a desenvolver uma criatividade invejável. “Das colchas de babados eu fazia uma floresta colorida, povoada com bichos - talvez ácaros -, anjos, carros e aviões que, um dia, quem sabe, pudessem me levar dali, com a esperança de que uma mãe não cometesse o ultraje de morrer, me deixando entregue a um destino pouco tranqüilizador”.
Já era adulta, mudou-se com a família para um casebre na beira da rodovia Raposo Tavares. Parecia que o futuro seria promissor. Dois anos depois, houve uma tentativa de seqüestro na vizinhança. Quatro indivíduos invadiram sua casa e fizeram refém toda a família de Rejane. “Tudo acabou bem, mas foi o suficiente para querermos todos, à exceção de meu irmão, nos mudar para o meio do mato”. Escolheram a cidade de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul.
Seguiram em busca do sonho. Lá conheceu seu primeiro marido, moço alto, de pele sedosa e olhos claros. “Lindo por fora, monstruoso por dentro, detalhe que só descobri após o casamento”. O rapaz foi diagnosticado como esquizofrênico, sofria de psicose maníaco-depressiva. Foram dois anos de horror, com toda espécie de humilhações, ameaças de morte, agressões morais e físicas.
“Aprendi o quanto pode ser tentadora a idéia da morte e passei a planejar o meu suicídio”. Durante dois anos, não contou a ninguém o que se passava com o casal. Descobriu que os doentes mentais são também atores natos. “Com toda a dissimulação dele, eu imaginava que jamais alguém acreditaria em mim se eu contasse que aquele anjo era um louco perigoso, prestes a perder a razão”. Nas poucas vezes em que arriscou comentar o que acontecia com algumas pessoas, todos ficaram contra ela.
Quando o marido soube que ela estava pintando o quadro dele para os outros, as agressões pioraram e se tornaram visíveis. “Aí me deram crédito e me impediram de levar a cabo o plano de ir, por conta própria, para a terra dos pés-juntos. Como se um pesadelo terminasse, nos separamos e nunca mais o vi. Foi há 15 anos”.
O episódio deixou algumas marcas. Pra começar, ela se trancou em casa durante um ano e só saía para trabalhar. Na primeira vez em que se arriscou a comparecer numa reunião social, precisou dopar-se com ansiolíticos, com medo das pessoas.
Procurou ajuda psiquiátrica. Ouviu da terapeuta que era manipuladora, pois se comportou com otimismo numa sessão e na seguinte demonstrou tristeza. “Ela sentiu-se enganada, acredita?”, conta, às gargalhadas. “Diante de tal opinião, resolvi enfiar a viola no saco e amargar o azedume do limão sozinha. Espremi bastante e, depois de dois anos, fiz uma limonada bem da chechelenta: juntei os trapinhos, por puro comodismo, com um sujeito que parecia gostar de mim. Logo descobri que estava, de novo, muito enganada”.
Decidiram voltar para São Paulo, ela, seus pais, e o mais novo par. O marido, assim que chegou à cidade, fez com que ela descesse do carro num bairro nunca antes visitado. Era a Lapa. Ele recomendou que ela procurasse um táxi, “desejou boa sorte e foi paparicar a irmã dele”.
Mesmo assim, “como a carência é difícil de administrar e de assumir”, continuaram juntos, cada um numa casa, até que se mudaram para São Bernardo do Campo. Estudou biblioteconomia, formou-se e começou a trabalhar na biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Na época, retomou um antigo hábito: os longos passeios de ônibus. “Duas horas para ir, mais três para voltar, uma vidinha sacrificada”. Enquanto isto, o marido se refestelava em hotéis de luxo na cidade maravilhosa, aproveitando as vantagens do excelente emprego de auditor – aliás, tão bom que lhe rendeu algumas amantes. “A partir de certo dia, elas passaram a me telefonar com certa freqüência, o que me fez enxergar que até carência tem limite, e que todo poço tem fundo, mesmo os equipados com alçapões.
“Eis que novamente me separei, num capítulo digno de filme de quinta categoria. O moço sentiu-se no pleno direito de aceitar sim a separação, mas pegou meus trapinhos e colocou-os todos em sacos de lixo pra fora da casa” Só pôde entrar novamente no apartamento para pegar algumas roupas com a ajuda da polícia. Depois disto, nos separamos. Nunca mais o vi. Foi há cinco anos”.
O que há de bom pra contar? Rejane foi morar sozinha, aprendeu a gostar muito da textura das paredes e a se remoer com tantas contas para pagar. “Adquiri um orgulho meio patético de ser capaz de lamber as próprias feridas e erguer cabeça, tronco e membros sem a ajuda de ninguém”. Fez um curso superior na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Universidade era coisa impensável na sua mocidade, já que a periferia costuma ser território demarcado com sangue que se derrama à noite. Nunca teve a menor perspectiva de futuro que incluísse horizonte sem armas e medo.
Nos piores momentos, esteve absolutamente sozinha. “Os melhores, eu divido com as pessoas que amo: os meus familiares, aqueles que o sangue destinou como amantes eternos, e os que escolhi (ou os que me escolheram) para juntos criarmos um mosaico, desenhado com respeito, afeto, amizade”. A emoção volta aos olhos miúdos, espertos, quase lascivos.
“Acho que sou uma pessoa comum, com histórias tristes, outras incomuns, que me ensinaram a acreditar não em sonhos, não em crenças místicas, mas na minha humanidade. Minha trajetória me ensinou que existe todo o tempo a polaridade, a mutação, e que isto não é bom ou mau, é simplesmente assim....a vida.”. E isto, ela confessa, deve ao seu anjo querido, aquele safado, um chato de um querubim, que decretou que ela estava predestinada a ser errada assim.

* Perfil realizado por Vinícius Monteiro, aluno do período diurno da disciplina de Jornalismo Literário ministrada no campus Morumbi no primeiro semestre de 2004.