Ele largou a batina para viver um grande amor

O italiano Gastone Simonetto era padre da igreja Nossa Senhora dos Imigrantes, na zona sul de São Paulo, até encontrar a mulher que o faria trocar o sacerdócio por uma vida a dois

Andréa Pontes*

A Igreja estava linda, toda enfeitada com flores do campo que exalavam um perfume suave, tornando aquele ambiente agradável e aconchegante. No altar as lindas rosas vermelhas contrastavam com a toalha branca de renda que cobria a mesa.
Era noite de Natal do ano de 1986 e o Padre Gastone celebrou a Missa do Galo às 23h como de costume, na Igreja Nossa Senhora dos Imigrantes no Grajaú, zona sul de São Paulo. A paróquia estava cheia e os fiéis, em sua pessoa maioria pessoas humildes, demonstravam disposição para ouvir palavras de esperança e renovação de fé.
Há 50 anos atrás nascia em Cantú, uma pequena cidade ao norte da Itália próximo a Milão, Gastone Simonetto. Filho de um trabalhador da indústria do aço e de uma dona de casa, que presenciaram a 2º Guerra Mundial, conviveu com as lembranças e vestígios deixados pela guerra naquele país. Por gostar muito de História e Filosofia, dedicou-se às Ciências Humanas, formou-se na Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), com bacharelado em Filosofia e mestrado em Teologia.
Este italiano de 1,80m de altura, olhos azuis, pele clara, cabelos castanhos claros, de beleza serena e semblante tranqüilo, possui gestos suaves e sua barba transmite seriedade. Morando há 20 anos no Brasil, fala bem o português, mas sua pronúncia não esconde o sotaque. Foi ordenado em 1983, chegando aqui em 1985 como missionário da Igreja Católica para exercer suas tarefas pastorais. Aos 28 anos, tinha sido designado pela Congregação dos Padres Carlitas (uma congregação da Igreja Católica) para lecionar Teologia na faculdade ITESP (Instituto Teológico de São Paulo), e trabalhar com os fluxos migratórios. Porém, quando não estava trabalhando e ficava sozinho com os seus pensamentos, sentia que algo lhe faltava. Entre orações e meditações, tentava descobrir o que lhe causava esse vazio.
Gastone percebeu sua vocação para o sacerdócio desde cedo, pois sempre gostou de se dedicar às pessoas carentes. Como padre percebeu o quanto havia pessoas necessitadas, material e espiritualmente. “Vi que poderia fazer muito e me dediquei à Comunidade do Grajaú, periferia de São Paulo. Lá eu congregava e buscava ajudar quem precisava”.
Após a Missa do Galo o padre Gastone recebeu os cumprimentos de algumas pessoas, retribuiu-lhes e neste momento um amigo, o padre Hermilo Pretto, perguntou:
__ Gastone, onde irás passar o Natal?
__ Irei para casa descansar um pouco e depois dormir, pois como sabe minha família está na Itália e nesse ano não pude ir vê-los.
__ Não meu amigo, não lhe deixarei só. Acompanhe-me a um amigo secreto que se realizará na casa de uma grande amiga.
Gastone hesita em aceitar o convite, pois ir a um evento de pessoas desconhecidas não era muito de seu feitio.
O Padre Pretto insiste e lhe diz que a confraternização será com os voluntários que trabalham junto à comunidade do Grajaú. Então Gastone aceita, entendendo que as pessoas não seriam estranhos como havia pensado.
- Está bem, vamos, mas não demorarei.

Chegando a casa de Maria, padre Pretto é recebido com um sorriso no rosto e apresenta Gastone a amiga, exatamente à meia-noite do dia 25 de dezembro de 1986. Naquele momento, um olhar penetrante e um breve silêncio selou um sentimento que mais tarde se revelaria. Os dois um pouco embaraçados falaram simultaneamente: “Muito prazer” e sorriram.
Maria, mulher de personalidade forte, trabalhadora e sonhadora, foi comandar o amigo secreto, pois os convidados esperavam ansiosos. Ela fazia questão de reunir todos em sua casa todos os anos. Apesar de ser uma residência simples, agradava-a vê-la sempre cheia de amigos. Nesta época morava no Jardim Noronha (Grajaú) com os seus dois filhos e seu marido Vantoir, que era metalúrgico.
Maria do Carmo nasceu em Viçosa, Minas Gerais. Bonita, alta com os seus 1,71m de altura, cabelos de cor louro-mate cortados pouco acima dos ombros, ela fez o possível para dar atenção a Gastone e sua companhia agradou-o muito. “Foi uma noite agradável, as estrelas e a lua compunham um lindo cenário no céu. Era uma noite especial que havia me transformado”, relembrou Gastone.
Aos poucos os convidados iam embora e Maria, muito sorridente, abraçava a todos agradecida pela confraternização animada que tiveram. Em meio a despedidas e arrumações Maria e Gastone não paravam de conversar, como se fossem amigos de longa data. Até que ele resolveu ir embora e despediram-se.
Quando Maria conheceu Gastone, aos 29 anos sua vida conjugal passava por uma crise, pois não havia mais o sentimento que justificasse tal união. Mãe de dois filhos, Andréia e Anderson, ela casou-se muito jovem, aos 15 anos de idade. “Naquela época os pais eram muito rigorosos e namoros longos não eram permitidos. Eu acreditava estar apaixonada e me casei”. O casamento durou 12 anos. “Foi bom porque tive meus dois filhos”.
Além de mãe dedicada, essa mineira trabalhava como voluntária na Comunidade carente na periferia do Grajaú, era vendedora das Lojas Marisa e ainda costurava. Mesmo com a vida atribulada de tarefas ela envolveu-se profundamente com os trabalhos sociais e isso necessitou maior dedicação de seu tempo junto à Comunidade de Base a qual se tornou coordenadora. Era responsável pela alfabetização de adultos, catequização e ainda ministrava cursos de corte e costura. Os trabalhos comunitários aproximaram Maria e Gastone e tornaram-se grandes amigos.
__ Quando Gastone entrou pela porta de minha casa, meu coração disparou, lembro-me ainda da roupa que trajava. Calça preta e camisa de manga comprida bege clarinha dobrada no punho. Mesmo respeitosamente, não conseguia tirar os olhos dele. Sua beleza e elegância me atraíram e, por mais que eu tentasse desviar, meus olhos sempre encontrava os dele. Também notei como me olhou. Inocentemente, acredito, pois sempre demonstrou ser correto em sua postura como padre.
Gastone completa:
__ Naquela noite algo diferente aconteceu, passei a admirar uma mulher que mal conhecia, mas que por outro lado parecia-me tão próxima. Maria me encantou desde o primeiro dia que a conheci.
__Depois daquele Natal passei a acreditar que Papai-Noel existe, Gastone foi um presente dele pra mim. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida!, conta Maria.
Mas para esse amor que crescia a cada dia sobreviver foram necessário provações para consolidar-se e mostrar-se verdadeiro. Eles procuraram com autencidade e sofrimento resolver separadamente suas vidas.
Maria separou-se de Vantoir, pois seu casamento há tempo tinha acabado. Na época adolescentes, os filhos a apoiaram, pois viam que o casamento não a fazia feliz. Já alguns da família a condenaram. “Era difícil para meus familiares aceitarem que me casaria novamente. Eles eram muito conservadores, era natural agirem dessa maneira”

__Eu passava os dias ansiosa pelo próximo fim de semana, quando encontraria Gastone novamente e sofria quando a música do Fantástico anunciava que a segunda-feira recém iniciaria uma semana que pra mim seria uma eternidade. O meu pensamento já corria ao próximo fim de semana. Meus dias passaram a ser trabalho e trabalho, corria para dar a impressão que passaria mais rápido e logo poderia vê-lo novamente.
A pureza desse amor permitia que às vezes conversássemos por meio do olhar. Nunca ousei me aproximar mais do que devia, pois tinha ciência que ele jamais trairia os seus votos. Mesmo assim o desejo de ficar com ele apesar de explícito ficou reservado em meu coração esperando que ele decidisse o seu destino. Não o pressionei em nenhum momento, pois ele nada me devia e nada me prometera.
De outro lado, Gastone sofria um tremendo conflito interno, pois seu interesse por Maria tornava-se mais evidente. Dúvidas e angústias o faziam questionar a sua opção de vida, por isso solicitou um afastamento de suas funções junto à igreja, período que serviu para reavaliar o que queria. Voltou à Itália, onde esteve por um período, e manteve-se reservado com seus pensamentos fazendo a reflexão da qual necessitava.
__ O fato é que não me sentia feliz. E quando cheguei a esta conclusão sofri, vi que aquele vazio que sentia no peito continuava. Procurei acompanhamento psicológico e esperei um diagnóstico do tipo: você está doente, isso é só uma carência. Queria uma indicação de um prazo para recuperar-me. Não admitia alternativas. A terapia foi justamente eu começar a admitir que poderia abrir espaço na minha vida para outra vocação: o amor de uma mulher, em lugar da humanidade, e a construção de um lar, em lugar de uma comunidade. Quando abri e segui este caminho, percebi que estava no trajeto certo. Voltei ao Brasil decidido a deixar o sacerdócio.
A decisão de deixar de ser padre foi sofrida e vivenciada numa dimensão de inevitável solidão. Houve quem fosse solidário a ele, bem como quem até cortasse as relações. Até a sua família na Itália ficou dividida, sobretudo frustrada quando souberam que sua decisão resultaria em permanecer no Brasil definitivamente.
Os irmãos limitaram-se a perguntar se a mudança o faria mais feliz. A Igreja e a Congregação mantiveram uma atitude formal para com ele. Não houve chantagem nem apoio, mas sua decisão lhe fez perder uma paixão: a de lecionar nas faculdades católicas, pois perdeu a cadeira de professor de Teologia.
Gastone não recriminou a Igreja por ter sido penalizado dessa maneira e nem se julgou vítima, apenas lamentou tal atitude, por acreditar que as posições devem ser reconsideradas num espírito de maior abertura mantendo a distinção entre os valores acadêmicos e as situações pessoais de vida.
__Aprendi que o importante é ser autêntico. Enfatizo esse valor por ter sido norteador das minhas decisões. Tornei-me sacerdote e missionário livremente. Não fui induzido a seguir a vocação, superei com entusiasmo as etapas que me levaram aos votos e à ordenação. Atuei apaixonadamente e recebi gratidão e carinho de volta, não me arrependo sequer de um dia desta fase da minha vida. Também não foi um erro. Simplesmente deixei espaço a uma outra força poderosa, que leva naturalmente os seres humanos a constituir uma família própria, em nome de um ideal e um amor universal. É essa a grandeza de uma vocação missionária: amar os seres humanos com absoluta gratuidade, sem esperar a resposta. É um caminho de verdadeira realização pessoal, que abre mão de outros valores, igualmente altos como a família.

No ano de 1988 o desejo de ficarem juntos já era inevitável e resolvida essas questões formais, Gastone e Maria resolveram ir morar juntos. Ele passou a trabalhar no Consulado Geral da Itália, onde desempenhava funções burocráticas.
Quando Maria, já separada de seu primeiro casamento, anunciou que iria viver com Gastone, sua família quase a linchou, ainda mais se tratando de um ex-padre. Para eles era inaceitável. Apenas Águida sua irmã e amiga, esteve com ela em todos os momentos.
__ Morar com ele, compartilhando do mesmo sentimento, mostrou-me o sentido de um verdadeiro amor. Sempre fomos companheiros, cúmplices e amantes e nossa relação é baseada no respeito mútuo.
__Conheci Maria e apaixonei-me. Quem a conhece torna-se facilmente seu amigo, admirei sua garra na liderança com a comunidade, sem por isso perder sua simplicidade. Convivendo com ela descobri que isto brotava de uma grande energia interior, de uma espiritualidade, de valores muito parecidos com os quais norteavam minha ação como padre: desinteresse, generosidade e altruísmo. Amor como empenho gratuito para melhorar a condição de vida dos menos afortunados. Ela é solidária, tolerante e isso me cativou.
Após três anos morando juntos, Maria engravida e nasce sua terceira filha, Cynthia. Pronto. A felicidade estava completa para aquele casal que unido esperava e torcia pela chegada da filha. Gastone não cabia em si de tanta felicidade! Seria pai de uma menininha, desejo que vinha nutrindo desde quando resolveu deixar a batina.
A gravidez de Maria foi tranqüila, assim como o parto. Cynthia nasceu saudável e apesar de tímida sempre foi muito alegre. Ela tem hoje 14 anos de idade e é orgulho dos pais e dos irmãos que a receberam com muito carinho.
__ Agora sim minha família está completa com meus três filhos e o homem que eu amo.
Em 1999 oficializaram a união. Foi uma festa muito bonita num salão de festas onde moravam. Rodeados por amigos e alguns entes da família eles selaram esse amor. Os pais de Gastone não puderam comparecer a cerimônia, mas já aceitavam a idéia dele viver no Brasil ao lado da mulher amada.
Gastone ainda trabalha no Consulado atuando na área de Assistência Social, o que lhe deixa feliz, pois como um católico praticante e mesmo não sendo mais padre realiza um trabalho de apoio as pessoas carentes da comunidade italiana e não desistiu do sonho de voltar a dar aulas. Maria uma mulher atuante como sempre foi, tem um ateliê no centro da cidade e divide seu tempo entre o trabalho e a família que construiu.
Passaram-se 16 anos, Anderson e Andréa casaram, nasceu Maria Eduarda, uma netinha luminosa. Maria repete com frescor do primeiro dia: “Gastone é o meu chão...” Ele responde, com serena tranqüilidade: “Minha senhora...” Os dois continuam andando de mãos dadas. A comunhão é tamanha que se torna enfática partilhar de emoções, dores e alegrias. Maria e Gastone amam repetir que o amor deles confunde-se com suas próprias vidas, enraíza-se nas entranhas de suas existências e sua eternidade não está mais ligada ao tempo e sim às suas próprias almas.

* Tenho 32 anos, sou casada com o economista João Gilberto e tenho uma filha de 4 anos, Letícia. Sou estudante de jornalismo da UniFIAMFAAM. Aprecio o jornalismo literário como vertente do jornalismo convencional e o interessante nas histórias de vida é que tornam o texto humanizado e atraente. Como gosto de ler, para mim tanto faz literaturas romanceadas, contos fictícios ou verídicos, pois as histórias em geral sempre tendem a nos acrescentar algo. Quando decidi escrever a história de vida de Gastone e Maria, o que mais me chamou a atenção foi o conflito que passaram em nome de uma causa que nunca merece perder: o amor.