O segredo de Joe Gould

Material disponibilizado no site da editora Companhia das Letras (www.companhiadasletras.com.br).

Em 1942, Joseph Mitchell publicou nas páginas da revista The New Yorker o perfil de um literato maltrapilho que vivia perambulando pelo Greenwich Village, o bairro boêmio de Nova York. O personagem chamava-se Joe Gould e a reportagem revelava que, apesar de viver como um mendigo - dormia em pensões baratas, albergues e, às vezes, até na rua -, preparava uma obra monumental: História oral do nosso tempo.

Gould morreu em 1957 e o livro que vinha escrevendo nunca foi encontrado - não se sabia, então, nem mesmo se chegara de fato a existir. Em 1964, sete anos após a morte de Gould e mais de vinte anos após o perfil da The New Yorker, Joseph Mitchell escreveu para a mesma revista outro texto sobre o boêmio do Village - "O segredo de Joe Gould" -, revelando o mistério guardado por tanto tempo. Depois dessa reportagem histórica, o jornalista nunca mais publicou sequer um texto. Mesmo assim, continuou a freqüentar a redação diariamente e a receber salário até o fim da vida. Morreu de câncer em 1996.

Mitchell era um dos repórteres mais talentosos da The New Yorker. Na revista, tinha liberdade absoluta: escrevia sobre o que quisesse, no prazo que julgasse necessário. Foi um dos primeiros repórteres a descrever histórias reais com técnicas de ficção. Era um jornalista atípico, que preferia escrever sobre pessoas anônimas e assuntos prosaicos, em vez de se ocupar da economia, da política ou do mundo das celebridades.

Os últimos trinta anos de sua vida são cercados de mistério: não se sabe sobre o que escrevia diariamente na redação da revista e, apesar das inúmeras especulações a respeito, ignora-se o motivo de seu silêncio. A qualidade literária de sua obra, porém, faz dele um dos mais importantes jornalistas americanos do século XX.

1. O Professor Gaivota

Joe Gould é um homenzinho alegre e macilento, conhecido em todas as lanchonetes, tabernas e botecos imundos do Greenwich Village há um quarto de século. Às vezes ele se gaba de ser o último dos boêmios. "Os outros todos caíram fora", explica. "Uns estão na cova, outros no hospício e alguns no ramo publicitário." Sua vida não é nada fácil; três flagelos o atormentam: falta de teto, fome e ressaca. Gould dorme nos bancos das estações do metrô, no chão do apartamento dos amigos e nos albergues da Bowery, onde o pernoite custa 25 centavos. De vez em quando se arrasta até o Harlem e por quinze centavos dorme num dos estabelecimentos conhecidos como "Anexos do Céu", administrados por seguidores de Father Divine, o evangelista negro. Tem 1,62 metro de altura e dificilmente pesa mais que 45 quilos. Pouco tempo atrás comentou com um amigo que não faz uma refeição decente desde junho de 1936, quando foi de carona até Cambridge e participou de um banquete da classe de Harvard de 1911, à qual pertence. "Nos Estados Unidos, sou a maior autoridade em privação", garante. "Vivo de ar, auto-estima, guimba de cigarro, café de caubói, sanduíche de ovo frito e ketchup." E esclarece que café de caubói é café preto, forte, sem açúcar. "Há muito tempo perdi o prazer do bom café", diz ele. "Prefiro o tipo que, se você sempre toma, fica com as mãos trêmulas e o branco dos olhos amarelo." Ao comer um sanduíche, habitualmente despeja no prato um ou dois vidros de ketchup e come tudo, às colheradas. Os empregados do Jefferson Diner, na Village Square, escondem o ketchup assim que Gould põe o pé na porta. "Eu nem gosto muito desse troço, mas tenho o costume de engolir tudo que me aparece", diz ele. "É o único grude grátis que eu conheço."

Gould é ianque. Sua família se estabeleceu na Nova Inglaterra em 1635, e ele tem parentesco com muitas outras famílias antigas da região, como os Lawrence, os Clark e os Storer. "Nada em mim é acidental", declarou certa vez. "Vou lhe contar o que foi necessário para fazer de mim o que sou hoje: velho sangue ianque, absoluta aversão a propriedades, quatro anos de Harvard e 25 anos de mata-bicho e gororoba carcomendo as entranhas." Ele diz que destoa do resto da humanidade porque não quer ser proprietário de nada. "Se o senhor Chrysler tentasse me dar de presente o Chrysler Building, eu poderia quebrar o pescoço ao fugir dele", assegura. "Eu não seria dono desse prédio; o prédio é que seria meu dono. Lá em Massachusetts me chamariam de velho ianque rabugento. Aqui me chamam de boêmio. É trocar seis por meia dúzia." Gould tem a voz fanhosa e o sotaque de Harvard. O pessoal que trabalha nos bares do Village se refere a ele como Professor, Gaivota, Professor Gaivota, Mangusto, Professor Mangusto, Garoto do Bellevue. Ele veste roupas usadas que ganha dos amigos. O capote, o terno, a camisa e até os sapatos invariavelmente são grandes demais, porém ele os usa com uma espécie de garbo desolado. "Olhe só para mim", costuma dizer. "A única coisa que me serve direitinho é a gravata." Nos dias mais terríveis do inverno, procura proteger-se do frio colocando algumas folhas de jornal entre a camisa e a camiseta. "Sou esnobe: só uso o Times", diz ele. Para cobrir a cabeça gosta de peças incomuns - gorro de esquiador, boina, boné de marinheiro. Numa noite de verão apareceu numa festa com um terno de anarruga, camisa pólo, faixa escarlate, sandálias e boné de marinheiro - tudo doado. Tem uma piteira preta e comprida e em boa parte do tempo fuma guimbas que cata nas calçadas.

A boemia deixou Gould velho demais. Ultimamente adquiriu o hábito de pedir a pessoas que acabou de conhecer que adivinhem sua idade. Os palpites vão de 65 a 75; ele tem 53. Mas não se aborrece com isso; ao contrário, acha que é uma prova de sua superioridade. "Vivo mais num ano que os comuns mortais em dez", vangloria-se. Não tem nem um dente na boca e quando fala seu maxilar inferior oscila de um lado para o outro. É careca, mas tem uma cabeleira longa e crespa na parte de trás da cabeça e uma barba densa, cor de canela. Usa uns óculos grandes demais, que estão sempre tortos e escorregando até a ponta do nariz. Nem sempre os usa na rua e, sem eles, tem o olhar desvairado de um velho estudioso que estropiou a vista lendo letras miúdas. Até mesmo no Village muita gente se volta para olhá-lo. Gould anda curvado, a passo rápido, resmungando consigo mesmo, inclinando a cabeça para a frente e para o lado. Em geral, carrega embaixo do braço esquerdo um portfólio bojudo e ensebado, de papelão pardo, e balança o braço direito agressivamente. Ao passar depressa, parece que está se esquivando de um inimigo imaginário. O artista Don Freeman, seu amigo, captou um momento desses num desenho que intitulou "Joe Gould versus os Elementos". Inquieto e independente como um gato vira-lata, Gould dá longas caminhadas pela cidade e de quando em quando desaparece do Village por semanas, deixando os amigos perplexos: eles nunca conseguiram imaginar seu paradeiro. Ao voltar, sempre parecendo muito contente consigo mesmo, tece comentários enigmáticos, ri e se fecha. "Fui dar um giro pelo cais com uma velha condessa", disse ele ao retornar de sua escapada mais recente. "Passamos três semanas estudando as gaivotas."

Gould raramente se separa de seu portfólio. Quando está comendo, deixa-o no colo; nos albergues em que dorme, guarda-o embaixo do travesseiro. Em geral a pasta contém um calhamaço de manuscritos, anotações, cartas, recortes e exemplares de revistas obscuras, um tinteiro, um dicionário, um saco de papel com tocos de cigarro, outro com migalhas de pão, e um terceiro com umas balas duras, redondas e baratas, de sabor frutado e ácido. "Combato o cansaço com essas balas", explica. As migalhas de pão são para os pombos: como muitos outros excêntricos, ele gosta de alimentá-los, e se afeiçoou a um bando que estabeleceu seu quartel-general no alto e em torno da estátua de Garibaldi, na Washington Square. Esses pombos conhecem Gould. Quando o vêem sentar-se no pedestal da estátua, empoleiram-se em sua cabeça e em seus ombros, esperando que ele tire da pasta o saco de migalhas. Ele deu nome a alguns. "Venha cá, Boss Tweed", diz ele. "Hoje de manhã uma senhora que estava lá na Stewart's deixou um resto de torrada de trigo integral e quando ela saiu - pimba! - peguei a sobra especialmente para você. Olá, Peitudo. Olá, Pançudo. Olá, Lady Astor. Olá, São João Batista. Olá, Polly Adler. Olá, Fiorello, seu bode velho, como vai?"

Embora se esforce para dar a impressão de que é um vagabundo filósofo, Gould tem trabalhado muito durante sua carreira de boêmio. Todos os dias, mesmo quando está com uma ressaca das bravas, ou com tanta fome que se sente fraco e desanimado, passa ao menos duas horas trabalhando num livro sem forma e misterioso que chama de "Uma história oral de nossa época". Começou a escrevê-lo 26 anos atrás e está longe de concluí-lo. A preocupação com essa obra parece ser o motivo principal de seu estilo de vida; um emprego fixo, qualquer que fosse, atrapalharia suas reflexões, diz ele. Dependendo do tempo, Gould escreve nas praças, nas soleiras das portas, nos saguões dos hotéis baratos, nas lanchonetes, nos bancos das plataformas da ferrovia elevada, nos trens do metrô e nas bibliotecas públicas. Quando está inspirado, escreve até cansar, e ele se inspira em ocasiões peculiares. Conta que uma noite ficou seis ou sete horas sentado num bar da Terceira Avenida, escutando a história de uma velha húngara bêbada, que já tinha sido cafetina e traficante de drogas e agora era cozinheira de um hospital municipal. Três dias depois, estava dormindo num catre do Hotel Defender, na Bowery, 300, e por volta das quatro da madrugada acordou com o apito dos rebocadores no East River; não conseguiu mais pregar os olhos, pois se sentiu no estado de espírito perfeito para escrever a biografia da velha cozinheira e incorporá-la a sua história. Gould tem uma memória extraordinária; quando se impressiona com uma conversa, ainda que seja longa e absurda, consegue retê-la na lembrança por muitos dias, praticamente palavra por palavra. Estava gripado, mas levantou-se, vestiu-se à luz de um letreiro vermelho que indicava a saída e, caminhando na ponta dos pés para não acordar os homens que dormiam nos outros catres, desceu para o saguão.

Ali escreveu das 4h15 ao meio-dia. Então saiu, tomou um café num boteco da Bowery e foi à biblioteca pública, onde trabalhou com afinco na sala de genealogia - um de seus refúgios nos dias chuvosos -, da qual ele diz gostar mais que da sala de leitura principal, porque é mais escura. Quando a sala de genealogia fechou, às seis da tarde, passou para a sala de leitura principal e lá ficou, raramente desviando os olhos do trabalho, até a biblioteca fechar, às dez da noite. Então comeu dois sanduíches de ovo e engoliu um balde de ketchup numa lanchonete da Times Square. Como não tinha 25 centavos para pernoitar num albergue e estava absorto demais em seus pensamentos para ir até o Village procurar abrigo, tomou o metrô em West Side e viajou o resto da noite, escrevendo sem parar, enquanto o trem completava três viagens de ida e volta entre a estação New Lots Avenue, no Brooklyn, e a Van Cortlandt Park, no Bronx, que é um dos trajetos mais longos do sistema metroviário. Manteve o portfólio no colo e usou-o como escrivaninha. Gould tem a resistência dos obcecados. Quando ficava sonolento demais para se concentrar, sacudia a cabeça vigorosamente e jogava uma bala na boca. As pessoas o encaravam, e um bêbado o interrompeu para lhe perguntar o que tanto escrevia. Gould sabe se livrar de bêbados intrometidos. Apontando para a orelha esquerda, falou: "O quê? O que é? Sou surdo como uma porta. Não escuto uma palavra". O bêbado perdeu todo o interesse por ele. "Estava amanhecendo quando desci do metrô", conta. "Eu tossia e espirrava, meus olhos doíam, os joelhos tremiam, eu estava com uma fome de lobo e tinha exatamente oito centavos no bolso. Nada disso me importava. Minha história tinha crescido, com onze mil palavras novinhas em folha, e naquele momento aposto que não havia em Nova York um presidente de empresa tão feliz quanto eu."