Fama e anonimato

Material disponibilizado no site da editora Companhia das Letras (www.companhiadasletras.com.br).

No início dos anos 60, o repórter Gay Talese saiu pela ruas de Nova York e descobriu uma segunda Estátua da Liberdade, cuja única função seria confundir os desavisados. Constatou também que os nova-iorquinos piscavam em média 28 vezes por segundo; que sob chuva o movimento do comércio caía de 15% a 20%, mas menos gente se matava nesses dias; que um mergulhador ganhava a vida recuperando objetos perdidos no fundo da baía de Nova York; que as prostitutas promoviam anualmente um baile em homenagem aos cafetães da cidade, e que as faxineiras do Empire State encontravam mais ou menos 5 mil dólares por ano nas 3 mil salas do edifício.
Fama e anonimato está repleto de informações assim: aparentemente inúteis, mas que, nas mãos de um escritor de primeira categoria, imprimem a textura real da cidade e o rosto de seus habitantes. Nas três séries de reportagens reunidas neste livro - a primeira, sobre o estranho universo urbano que é Nova York; a segunda, sobre a saga da construção da ponte Verrazzano-Narrows, e a terceira, sobre artistas e esportistas americanos -, Talese abriu a picada do que mais tarde seria batizado de "novo jornalismo" ou jornalismo literário, um tipo de reportagem que alia um texto de alta qualidade a um olhar que foge aos lugares-comuns.
Foi esse espírito de observação que levou Gay Talese a escrever um perfil considerado exemplar pela leveza e audácia com que foi feito: "Frank Sinatra está resfriado". Nesse texto, incluído na terceira parte do livro, o repórter faz um retrato certeiro do cantor, sem que tenha conseguido entrevistá-lo.
Publicado no Brasil pela primeira vez em 1973, sob o título Aos olhos da multidão, o livro se tornou uma raridade disputada em sebos. Esta nova edição traz dois textos inéditos em livro, que narram a feitura do perfil de Sinatra e das matérias sobre a ponte Verrazzano-Narrows, além de um posfácio do jornalista Humberto Werneck.

Prefácio do autor

A maioria dos textos deste livro se enquadra num tipo de reportagem que se costuma classificar de "novo jornalismo", "nova não-ficção" ou "parajornalismo", sendo a última uma forma pejorativa cunhada pelo falecido crítico Dwight MacDonald, que tinha lá suas desconfianças em relação a esse gênero, pois achava, assim como alguns outros críticos, que seus autores deturpavam os fatos para conseguir um maior efeito dramático.
Eu não concordo. Embora muitas vezes seja lido como ficção, o novo jornalismo não é ficção. Ele é, ou deveria ser, tão fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem, embora busque uma verdade mais ampla que a obtida pela mera compilação de fatos passíveis de verificação, pelo uso de aspas e observância dos rígidos princípios organizacionais à moda antiga. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem, possibilitando ao autor inserir-se na narrativa se assim o desejar, como fazem muitos escritores, ou assumir o papel de um observador neutro, como outros preferem, inclusive eu próprio.
Eu procuro seguir os objetos de minha reportagem de forma discreta, observando-os em situações reveladoras, atentando para suas reações e para as reações dos outros diante deles. Tento apreender a cena em sua inteireza, o diálogo e o clima, a tensão, o drama, o conflito, e então em geral a escrevo do ponto de vista da pessoa retratada, às vezes revelando o que esses indivíduos pensam durante os momentos que descrevo. Esse tipo de insight depende, naturalmente, da cooperação total da pessoa sobre a qual se escreve, mas se o escritor goza de sua confiança, é possível, por meio de entrevistas, fazendo as perguntas certas nas horas certas, aprender e reportar o que se passa na mente de outras pessoas.
Recorri muito a essa técnica em meus quatro últimos livros, inclusive A mulher do próximo; este, publicado em 1980, descreve a vida sexual privada e os valores morais cambiantes de muitos casais americanos na era "liberada" de antes da aids. E em 1990 meu interesse jornalístico pela esfera da intimidade fez com que eu me afastasse de meu papel de "observador neutro", e me surpreendi invadindo minha própria privacidade e a de meus antepassados estrangeiros, em meu livro Unto the sons, publicado há pouco tempo.
Mas relendo Unto the sons agora, em 1992, notei que ele contém numerosas observações, e mesmo frases, que foram publicadas pela primeira vez nos idos da década de 60, quando eu estava envolvido com o livro que o leitor tem nas mãos, Fama e anonimato. E embora Fama e anonimato não chegue a pôr em prática tudo que creio ser possível na não-ficção criativa, com certeza marca a passagem do "velho" jornalismo que eu praticava no New York Times na década de 50 para o estilo de reportagem mais livre e mais desafiador que a revista Esquire aceitava e estimulava, sob a editoria do falecido Harold Hayes.
Comecei a escrever na Esquire em 1960, com um ensaio sobre as pessoas anônimas de Nova York, uma série de vinhetas sobre as pessoas que ninguém vê, fatos estranhos e acontecimentos bizarros que me seduziram durante minhas andanças pela cidade como jornalista. Quando a Esquire publicou o ensaio, eu o ampliei para produzir um livro ilustrado que a Harper & Row lançou em 1961, com o título de New York - A serendipiter's journey [Nova York - A jornada de um serendipitoso]. O texto desse livro constitui a primeira parte desta edição de Fama e anonimato; para mim, agora ele representa minha visão juvenil de Nova York, dinamizada por uma mistura de admiração e espanto, e me lembra também de quão destrutiva uma cidade pode se tornar, quanto ela promete muito mais do que pode cumprir, e de como estava certo E. B. White quando escreveu, muitos anos atrás: "Ninguém deve vir morar em Nova York a menos que esteja disposto a ter muita sorte". Há também nesses escritos os primeiros sinais de meu interesse pelo uso de técnicas de ficção, um desejo, de certa forma, de dar à reportagem o tom que Irwin Shaw e John O'Hara deram ao conto.
Na segunda parte de Fama e anonimato, chamada "A ponte", minha escrita é menos difusa, porque me concentrei, meses a fio, num grupo de homens extraordinários que começaram a trabalhar em Nova York, em 1961, na construção da grande ponte Verrazano-Narrows, entre Staten Island e o Brooklyn. Entre 1961 e 1964 passei todo o tempo que me foi possível no canteiro de obras da ponte, não apenas visitando os barracões dos operários de ambos os lados do rio Hudson, mas também muitas vezes pondo um capacete e misturando-me aos homens nas vigas de aço e nos cabos que se estendiam cerca de 180 metros acima do mar. Muitos desses operários de pés firmes eram índios da reserva de Caughnawaga, perto de Montreal, e vez por outra eu os acompanhei nas visitas que faziam a suas famílias nos fins de semana, achando as viagens de carro, com motoristas encharcados de uísque, muito mais assustadoras que minhas andanças nas alturas, nas estreitas vigas da ponte, em dias de mais vento. Nunca vou esquecer as ocasiões em que vi nosso carro sair da estrada e atingir de raspão renques de sequóias e, uma vez, um cervo saltitante que fez um pequeno estrago.
Essas excursões acabaram para mim em 1964, com a publicação, pela Harper & Row, do livro ilustrado The bridge, texto que é reproduzido nesta edição de Fama e anonimato tal qual foi escrito; assim sendo, a linguagem que nele se encontra nem sempre é "politicamente correta", segundo o jargão desta década de 90: não transformei meus índios em "americanos nativos" nem impliquei com meus personagens masculinos que assobiavam para belas "garotas" e não para "jovens mulheres"; tampouco atualizei as minhas cifras, mesmo se minha definição de "abundância" hoje em dia se reduz à linha de pobreza.
A terceira parte de Fama e anonimato se concentra nos sonhos e nas aspirações declinantes de muita gente bastante familiarizada com o errático vaivém dos holofotes da fama - pessoas como o cantor Frank Sinatra, a lenda do beisebol Joe DiMaggio, o ex-campeão de boxe Floyd Patterson, o ator Peter O'Toole, as garotas da capa da Vogue, a personalidade literária George Plimpton e o que um agente chamou de "gangue nova-iorquina de East Side" de Plimpton - estes e vários outros temas da terceira parte são apresentados num estilo que se aproxima bastante da invejável e aparentemente fácil leveza de meus contistas preferidos.
Um dos primeiros exemplos desse estilo é o perfil que fiz para a Esquire em 1962, de Joe Louis, um pugilista que, embora afastado do boxe, insiste em lutar; a matéria começa com o cinqüentão Louis, cansado de três dias e noites de diversão em Nova York com algumas fãs, desembarcando no aeroporto de Los Angeles, onde é recebido por sua terceira mulher, uma advogada - uma cena em que eles se desentendem, com diálogos que parecem ter sido inspirados pela cena de rua entre marido e esposa do conto "Girls in their summer dresses", de Irwin Shaw.
Em meu perfil do diretor teatral Joshua Logan ("A psique sensível de Joshua Logan"), eu estava no teatro certa tarde assistindo Logan ensaiar sua peça quando, de repente, ele e a atriz principal, Claudia McNeil, entraram numa discussão que, além de assumir um tom mais dramático que a própria peça, revelava algo do caráter de Logan e de McNeil que eu não poderia ter apreendido se tivesse adotado um estilo de reportagem mais convencional.
Quando estava pesquisando para traçar o perfil de Frank Sinatra ("Frank Sinatra está resfriado") descobri que a cooperação - ou a falta dela - por parte da pessoa a ser retratada não importa muito, desde que o escritor possa acompanhar seus movimentos, ainda que à distância. Durante o tempo que passei em Los Angeles, Sinatra não se dispôs a cooperar. Eu cheguei num momento muito ruim para Sinatra, pois ele padecia de um resfriado e de muitos outros incômodos, e não consegui a entrevista que me havia sido prometida. Mesmo assim, pude observá-lo durante as seis semanas que passei fazendo a pesquisa, assistindo a sessões de gravação em estúdio, vendo-o no set de filmagem, nas mesas de jogo de Las Vegas, e testemunhei suas mudanças de humor, sua irritação e desconfiança quando achava que eu estava me aproximando demais, e seu prazer e gentileza quando, cercado de gente de sua confiança, conseguia relaxar. Foi mais proveitoso observá-lo, ouvir as suas conversas, estudar a reação das pessoas à sua volta do que me sentar e conversar com ele, caso tivesse me concedido a entrevista.
Joe DiMaggio ("O outono de um herói") se mostrou ainda mais relutante, no início de minha pesquisa sobre ele em San Francisco, em 1965. Eu conhecera DiMaggio seis meses antes, em Nova York, e na ocasião ele tinha prometido cooperar.
Mas sua atitude mudou radicalmente quando cheguei à porta de seu restaurante em Fisherman's Wharf, em San Francisco. Ainda assim, o modo tenso e irritado como ele me recebeu em San Francisco me valeu uma interessante cena de abertura que não apenas testemunhei mas da qual participei, sendo expulso do local pelo próprio DiMaggio. Consegui me reaproximar dele alguns dias depois porque lhe pedi, por intermédio de um amigo seu, também parceiro de golfe, que me permitisse acompanhar as duas duplas de jogadores em sua volta pelos dezoito buracos. Durante a partida de golfe, DiMaggio, que odeia perder bolas de golfe, perdeu três. Eu as encontrei. A partir daí sua atitude com relação a mim mudou sensivelmente; fui convidado a assistir a outras partidas de golfe e a acompanhá-lo num encontro com outros amigos no Reno's, um bar em San Francisco onde fiz boa parte do trabalho.
Exceto uma ou outra mudança de palavras, como as que fiz visando recuperar as obscenidades pitorescas de Peter O'Toole, amenizadas pelos editores da Esquire, não atualizei nenhum dos textos deste livro. Eles se apresentam simplesmente como uma coletânea de meus primeiros trabalhos; não obstante, como já disse, existe uma relação entre estes trabalhos e os que eu viria a desenvolver em meus livros mais conhecidos. Os textos sobre Joe DiMaggio, Frank Sinatra e também o que trata do gângster Frank Costello ("A ética étnica de Frank Costello") contêm temas que aprofundei mais tarde em meu livro sobre a máfia - Honrados mafiosos. Esse material é retomado e desenvolvido de forma diferente e pessoal em meu livro mais recente, acima mencionado, Unto the sons, há pouco publicado pela Ivy em brochura. O último perfil de Fama e anonimato ("Sr. Má Notícia") descreve a vida de um obscuro jornalista especializado na redação de obituários, que conheci à época em que eu trabalhava na editoria de Notícias Locais do New York Times. Escrevi sobre ele para a Esquire, e aquela foi a primeira vez que descrevi um colega de jornalismo para os leitores de todo o país; quatro anos depois, em 1969, continuei com uma galeria desses colegas num livro sobre o New York Times que se tornou meu primeiro best-seller, O reino e o poder. A mulher do próximo nasceu de minha curiosidade pelos "maus pensamentos" e pelos pecados sexuais de que as freiras da minha escola paroquial e o vigário não paravam de falar durante toda a minha infância - infância que retomei em Unto the sons.
E por aí vai. As obsessões de um escritor vêm à tona e voltam a aflorar numa espiral imprevisível; as técnicas evoluem, mas a imaginação permanece.

Gay Talese
Agosto de 1992


PARTE I
NOVA YORK
A JORNADA DE UM SERENDIPITOSO

Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas

Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas. É uma cidade que tem gatos dormindo debaixo dos carros, dois tatus de pedra que escalam a catedral de St. Patrick e milhares de formigas que rastejam no alto do Empire State Building. As formigas provavelmente foram levadas para lá pelo vento ou pelos pássaros, mas ninguém sabe ao certo; ninguém em Nova York sabe mais sobre as formigas do que sobre o mendigo que toma táxis para o Bowery; ou sobre o homem alinhado que retira lixo dos latões da Sixth Avenue; ou sobre o médium das imediações da West Seventy Street que afirma: "Sou clarividente, clariaudiente e clari-sensorial".
Nova York é uma cidade para excêntricos e uma central de pequenas curiosidades. Os nova-iorquinos piscam 28 vezes por minuto, quarenta quando estão tensos. A maioria das pessoas que comem pipoca no Yankee Stadium pára de mastigar por um instante, pouco antes de um jogador fazer um arremesso. As pessoas que mascam chicletes nas escadas rolantes da Macy's param de mascar por um instante, logo antes de descer - para se concentrar no último degrau. Os funcionários que limpam o tanque dos leões-marinhos do zoológico do Bronx costumam encontrar moedas, clipes de papel, canetas esferográficas e bolsinhas de meninas.
Todo dia os nova-iorquinos enxugam 1,74 milhão de litros de cerveja, devoram 1,5 mil toneladas de carne e passam 34 quilômetros de fio dental entre os dentes. Todo dia morrem cerca de 250 pessoas em Nova York, nascem 460, e 150 mil andam pela cidade com olhos de vidro.
Um porteiro da Park Avenue tem três fragmentos de bala na cabeça - que estão lá desde a Primeira Guerra Mundial. Muitas jovens filhas de ciganos, influenciadas pela televisão e pelas leituras, fogem de casa porque não querem crescer e virar cartomantes. Todo mês, quinhentos quilos de cabelo são entregues a Louis Feder, no número 545 da Fifth Avenue, onde se confeccionam perucas loiras com cabelos de mulheres alemãs e perucas morenas com cabelos de francesas e italianas. Não se fazem perucas com cabelos de americanas, diz o sr. Feder, porque são muito fracos devido ao excesso de lavagens e permanentes.
Alguns dos homens mais bem informados de Nova York são ascensoristas, que raramente falam, mas sempre escutam - da mesma forma que os porteiros. O porteiro do Sardi's ouve os comentários dos espectadores das estréias, que passam pelo bar depois do último ato. Ele ouve de perto. Atentamente. Dez minutos depois de cair o pano, ele é capaz de dizer quais espetáculos serão um fracasso e quais serão um sucesso.
Na Broadway, ao anoitecer, pára um grande Rolls-Royce 1948 preto - e dele sai uma senhora baixinha, munida de uma Bíblia e de um cartaz em que se lê "Os condenados perecerão". Ela se dirige a uma esquina, onde fica bradando às multidões de pecadores da Broadway até as três da manhã, quando então o Rolls-Royce a leva de volta a Westchester. A essa altura a Fifth Avenue está praticamente vazia, exceto por uns poucos caminhantes insones, um ou outro taxista procurando clientes, e um grupo de mulheres sofisticadas que fica nas vitrines noite e dia, exibindo sorrisos frios e perfeitos - compostos de lábios de argila, olhos de vidro e rostos que não deixarão de brilhar enquanto a pintura não perder a cor. Como sentinelas, elas se enfileiram na Fifth Avenue - esses manequins de vitrine, que fitam a rua silenciosa, cabeças inclinadas, dedos dos pés delgados, e nas mãos compridos dedos de borracha estendendo-se para pegar cigarros inexistentes. Às quatro da manhã, algumas vitrines se tornam um estranho reino encantado, de deusas magricelas, todas paralisadas, prestes a correr para uma festa, mergulhar numa piscina ou flutuar em direção ao céu num vaporoso robe azul.
Essa ilusão fantástica se deve, em parte, a uma imaginação delirante, mas também à incrível capacidade dos fabricantes de manequins, que os dotaram de certos traços individuais - partindo do princípio de que não existem duas mulheres totalmente iguais, nem mesmo de plástico ou de gesso. O resultado é que os manequins da Peck & Peck são feitos para parecerem jovens e esbeltos, enquanto os da Lord & Taylor têm ar mais grave e cabelo curto, penteado para a frente. Na Saks eles são tímidos porém maduros, ao passo que na Bergdorf's possuem uma elegância sem idade e dão a impressão de serena opulência. Os perfis dos manequins da Fifth Avenue foram modelados a partir das mulheres mais encantadoras do mundo - mulheres como Suzy Parker, que posou para a empresa Best & Co., e Brigitte Bardot, que serviu de inspiração para alguns manequins da Saks. A preocupação em fazer manequins quase humanos, dotando-os de curvas, talvez seja responsável pelo estranho fascínio que muitos nova-iorquinos têm por essas virgens sintéticas. É por isso que alguns vitrinistas muitas vezes conversam com manequins e lhes dão apelidos, e que os manequins nus nas vitrines sempre atraem os homens, enojam as mulheres e foram proibidos na cidade de Nova York. Isso explica por que alguns manequins são atacados por tarados, e por que o esbelto manequim de uma loja de White Plains foi encontrado no porão, pouco tempo atrás, com as roupas rasgadas, a pintura manchada e o corpo apresentando marcas de uma tentativa de estupro. Certa noite a polícia montou uma armadilha e pegou o agressor - um homenzinho tímido: o porteiro.
Prefácio do autor

A maioria dos textos deste livro se enquadra num tipo de reportagem que se costuma classificar de "novo jornalismo", "nova não-ficção" ou "parajornalismo", sendo a última uma forma pejorativa cunhada pelo falecido crítico Dwight MacDonald, que tinha lá suas desconfianças em relação a esse gênero, pois achava, assim como alguns outros críticos, que seus autores deturpavam os fatos para conseguir um maior efeito dramático.
Eu não concordo. Embora muitas vezes seja lido como ficção, o novo jornalismo não é ficção. Ele é, ou deveria ser, tão fidedigno quanto a mais fidedigna reportagem, embora busque uma verdade mais ampla que a obtida pela mera compilação de fatos passíveis de verificação, pelo uso de aspas e observância dos rígidos princípios organizacionais à moda antiga. O novo jornalismo permite, na verdade exige, uma abordagem mais imaginativa da reportagem, possibilitando ao autor inserir-se na narrativa se assim o desejar, como fazem muitos escritores, ou assumir o papel de um observador neutro, como outros preferem, inclusive eu próprio.
Eu procuro seguir os objetos de minha reportagem de forma discreta, observando-os em situações reveladoras, atentando para suas reações e para as reações dos outros diante deles. Tento apreender a cena em sua inteireza, o diálogo e o clima, a tensão, o drama, o conflito, e então em geral a escrevo do ponto de vista da pessoa retratada, às vezes revelando o que esses indivíduos pensam durante os momentos que descrevo. Esse tipo de insight depende, naturalmente, da cooperação total da pessoa sobre a qual se escreve, mas se o escritor goza de sua confiança, é possível, por meio de entrevistas, fazendo as perguntas certas nas horas certas, aprender e reportar o que se passa na mente de outras pessoas.
Recorri muito a essa técnica em meus quatro últimos livros, inclusive A mulher do próximo; este, publicado em 1980, descreve a vida sexual privada e os valores morais cambiantes de muitos casais americanos na era "liberada" de antes da aids. E em 1990 meu interesse jornalístico pela esfera da intimidade fez com que eu me afastasse de meu papel de "observador neutro", e me surpreendi invadindo minha própria privacidade e a de meus antepassados estrangeiros, em meu livro Unto the sons, publicado há pouco tempo.
Mas relendo Unto the sons agora, em 1992, notei que ele contém numerosas observações, e mesmo frases, que foram publicadas pela primeira vez nos idos da década de 60, quando eu estava envolvido com o livro que o leitor tem nas mãos, Fama e anonimato. E embora Fama e anonimato não chegue a pôr em prática tudo que creio ser possível na não-ficção criativa, com certeza marca a passagem do "velho" jornalismo que eu praticava no New York Times na década de 50 para o estilo de reportagem mais livre e mais desafiador que a revista Esquire aceitava e estimulava, sob a editoria do falecido Harold Hayes.
Comecei a escrever na Esquire em 1960, com um ensaio sobre as pessoas anônimas de Nova York, uma série de vinhetas sobre as pessoas que ninguém vê, fatos estranhos e acontecimentos bizarros que me seduziram durante minhas andanças pela cidade como jornalista. Quando a Esquire publicou o ensaio, eu o ampliei para produzir um livro ilustrado que a Harper & Row lançou em 1961, com o título de New York - A serendipiter's journey [Nova York - A jornada de um serendipitoso]. O texto desse livro constitui a primeira parte desta edição de Fama e anonimato; para mim, agora ele representa minha visão juvenil de Nova York, dinamizada por uma mistura de admiração e espanto, e me lembra também de quão destrutiva uma cidade pode se tornar, quanto ela promete muito mais do que pode cumprir, e de como estava certo E. B. White quando escreveu, muitos anos atrás: "Ninguém deve vir morar em Nova York a menos que esteja disposto a ter muita sorte". Há também nesses escritos os primeiros sinais de meu interesse pelo uso de técnicas de ficção, um desejo, de certa forma, de dar à reportagem o tom que Irwin Shaw e John O'Hara deram ao conto.
Na segunda parte de Fama e anonimato, chamada "A ponte", minha escrita é menos difusa, porque me concentrei, meses a fio, num grupo de homens extraordinários que começaram a trabalhar em Nova York, em 1961, na construção da grande ponte Verrazano-Narrows, entre Staten Island e o Brooklyn. Entre 1961 e 1964 passei todo o tempo que me foi possível no canteiro de obras da ponte, não apenas visitando os barracões dos operários de ambos os lados do rio Hudson, mas também muitas vezes pondo um capacete e misturando-me aos homens nas vigas de aço e nos cabos que se estendiam cerca de 180 metros acima do mar. Muitos desses operários de pés firmes eram índios da reserva de Caughnawaga, perto de Montreal, e vez por outra eu os acompanhei nas visitas que faziam a suas famílias nos fins de semana, achando as viagens de carro, com motoristas encharcados de uísque, muito mais assustadoras que minhas andanças nas alturas, nas estreitas vigas da ponte, em dias de mais vento. Nunca vou esquecer as ocasiões em que vi nosso carro sair da estrada e atingir de raspão renques de sequóias e, uma vez, um cervo saltitante que fez um pequeno estrago.
Essas excursões acabaram para mim em 1964, com a publicação, pela Harper & Row, do livro ilustrado The bridge, texto que é reproduzido nesta edição de Fama e anonimato tal qual foi escrito; assim sendo, a linguagem que nele se encontra nem sempre é "politicamente correta", segundo o jargão desta década de 90: não transformei meus índios em "americanos nativos" nem impliquei com meus personagens masculinos que assobiavam para belas "garotas" e não para "jovens mulheres"; tampouco atualizei as minhas cifras, mesmo se minha definição de "abundância" hoje em dia se reduz à linha de pobreza.
A terceira parte de Fama e anonimato se concentra nos sonhos e nas aspirações declinantes de muita gente bastante familiarizada com o errático vaivém dos holofotes da fama - pessoas como o cantor Frank Sinatra, a lenda do beisebol Joe DiMaggio, o ex-campeão de boxe Floyd Patterson, o ator Peter O'Toole, as garotas da capa da Vogue, a personalidade literária George Plimpton e o que um agente chamou de "gangue nova-iorquina de East Side" de Plimpton - estes e vários outros temas da terceira parte são apresentados num estilo que se aproxima bastante da invejável e aparentemente fácil leveza de meus contistas preferidos.
Um dos primeiros exemplos desse estilo é o perfil que fiz para a Esquire em 1962, de Joe Louis, um pugilista que, embora afastado do boxe, insiste em lutar; a matéria começa com o cinqüentão Louis, cansado de três dias e noites de diversão em Nova York com algumas fãs, desembarcando no aeroporto de Los Angeles, onde é recebido por sua terceira mulher, uma advogada - uma cena em que eles se desentendem, com diálogos que parecem ter sido inspirados pela cena de rua entre marido e esposa do conto "Girls in their summer dresses", de Irwin Shaw.
Em meu perfil do diretor teatral Joshua Logan ("A psique sensível de Joshua Logan"), eu estava no teatro certa tarde assistindo Logan ensaiar sua peça quando, de repente, ele e a atriz principal, Claudia McNeil, entraram numa discussão que, além de assumir um tom mais dramático que a própria peça, revelava algo do caráter de Logan e de McNeil que eu não poderia ter apreendido se tivesse adotado um estilo de reportagem mais convencional.
Quando estava pesquisando para traçar o perfil de Frank Sinatra ("Frank Sinatra está resfriado") descobri que a cooperação - ou a falta dela - por parte da pessoa a ser retratada não importa muito, desde que o escritor possa acompanhar seus movimentos, ainda que à distância. Durante o tempo que passei em Los Angeles, Sinatra não se dispôs a cooperar. Eu cheguei num momento muito ruim para Sinatra, pois ele padecia de um resfriado e de muitos outros incômodos, e não consegui a entrevista que me havia sido prometida. Mesmo assim, pude observá-lo durante as seis semanas que passei fazendo a pesquisa, assistindo a sessões de gravação em estúdio, vendo-o no set de filmagem, nas mesas de jogo de Las Vegas, e testemunhei suas mudanças de humor, sua irritação e desconfiança quando achava que eu estava me aproximando demais, e seu prazer e gentileza quando, cercado de gente de sua confiança, conseguia relaxar. Foi mais proveitoso observá-lo, ouvir as suas conversas, estudar a reação das pessoas à sua volta do que me sentar e conversar com ele, caso tivesse me concedido a entrevista.
Joe DiMaggio ("O outono de um herói") se mostrou ainda mais relutante, no início de minha pesquisa sobre ele em San Francisco, em 1965. Eu conhecera DiMaggio seis meses antes, em Nova York, e na ocasião ele tinha prometido cooperar.
Mas sua atitude mudou radicalmente quando cheguei à porta de seu restaurante em Fisherman's Wharf, em San Francisco. Ainda assim, o modo tenso e irritado como ele me recebeu em San Francisco me valeu uma interessante cena de abertura que não apenas testemunhei mas da qual participei, sendo expulso do local pelo próprio DiMaggio. Consegui me reaproximar dele alguns dias depois porque lhe pedi, por intermédio de um amigo seu, também parceiro de golfe, que me permitisse acompanhar as duas duplas de jogadores em sua volta pelos dezoito buracos. Durante a partida de golfe, DiMaggio, que odeia perder bolas de golfe, perdeu três. Eu as encontrei. A partir daí sua atitude com relação a mim mudou sensivelmente; fui convidado a assistir a outras partidas de golfe e a acompanhá-lo num encontro com outros amigos no Reno's, um bar em San Francisco onde fiz boa parte do trabalho.
Exceto uma ou outra mudança de palavras, como as que fiz visando recuperar as obscenidades pitorescas de Peter O'Toole, amenizadas pelos editores da Esquire, não atualizei nenhum dos textos deste livro. Eles se apresentam simplesmente como uma coletânea de meus primeiros trabalhos; não obstante, como já disse, existe uma relação entre estes trabalhos e os que eu viria a desenvolver em meus livros mais conhecidos. Os textos sobre Joe DiMaggio, Frank Sinatra e também o que trata do gângster Frank Costello ("A ética étnica de Frank Costello") contêm temas que aprofundei mais tarde em meu livro sobre a máfia - Honrados mafiosos. Esse material é retomado e desenvolvido de forma diferente e pessoal em meu livro mais recente, acima mencionado, Unto the sons, há pouco publicado pela Ivy em brochura. O último perfil de Fama e anonimato ("Sr. Má Notícia") descreve a vida de um obscuro jornalista especializado na redação de obituários, que conheci à época em que eu trabalhava na editoria de Notícias Locais do New York Times. Escrevi sobre ele para a Esquire, e aquela foi a primeira vez que descrevi um colega de jornalismo para os leitores de todo o país; quatro anos depois, em 1969, continuei com uma galeria desses colegas num livro sobre o New York Times que se tornou meu primeiro best-seller, O reino e o poder. A mulher do próximo nasceu de minha curiosidade pelos "maus pensamentos" e pelos pecados sexuais de que as freiras da minha escola paroquial e o vigário não paravam de falar durante toda a minha infância - infância que retomei em Unto the sons.
E por aí vai. As obsessões de um escritor vêm à tona e voltam a aflorar numa espiral imprevisível; as técnicas evoluem, mas a imaginação permanece.

Gay Talese
Agosto de 1992


PARTE I
NOVA YORK
A JORNADA DE UM SERENDIPITOSO

Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas

Nova York é uma cidade de coisas que passam despercebidas. É uma cidade que tem gatos dormindo debaixo dos carros, dois tatus de pedra que escalam a catedral de St. Patrick e milhares de formigas que rastejam no alto do Empire State Building. As formigas provavelmente foram levadas para lá pelo vento ou pelos pássaros, mas ninguém sabe ao certo; ninguém em Nova York sabe mais sobre as formigas do que sobre o mendigo que toma táxis para o Bowery; ou sobre o homem alinhado que retira lixo dos latões da Sixth Avenue; ou sobre o médium das imediações da West Seventy Street que afirma: "Sou clarividente, clariaudiente e clari-sensorial".
Nova York é uma cidade para excêntricos e uma central de pequenas curiosidades. Os nova-iorquinos piscam 28 vezes por minuto, quarenta quando estão tensos. A maioria das pessoas que comem pipoca no Yankee Stadium pára de mastigar por um instante, pouco antes de um jogador fazer um arremesso. As pessoas que mascam chicletes nas escadas rolantes da Macy's param de mascar por um instante, logo antes de descer - para se concentrar no último degrau. Os funcionários que limpam o tanque dos leões-marinhos do zoológico do Bronx costumam encontrar moedas, clipes de papel, canetas esferográficas e bolsinhas de meninas.
Todo dia os nova-iorquinos enxugam 1,74 milhão de litros de cerveja, devoram 1,5 mil toneladas de carne e passam 34 quilômetros de fio dental entre os dentes. Todo dia morrem cerca de 250 pessoas em Nova York, nascem 460, e 150 mil andam pela cidade com olhos de vidro.
Um porteiro da Park Avenue tem três fragmentos de bala na cabeça - que estão lá desde a Primeira Guerra Mundial. Muitas jovens filhas de ciganos, influenciadas pela televisão e pelas leituras, fogem de casa porque não querem crescer e virar cartomantes. Todo mês, quinhentos quilos de cabelo são entregues a Louis Feder, no número 545 da Fifth Avenue, onde se confeccionam perucas loiras com cabelos de mulheres alemãs e perucas morenas com cabelos de francesas e italianas. Não se fazem perucas com cabelos de americanas, diz o sr. Feder, porque são muito fracos devido ao excesso de lavagens e permanentes.
Alguns dos homens mais bem informados de Nova York são ascensoristas, que raramente falam, mas sempre escutam - da mesma forma que os porteiros. O porteiro do Sardi's ouve os comentários dos espectadores das estréias, que passam pelo bar depois do último ato. Ele ouve de perto. Atentamente. Dez minutos depois de cair o pano, ele é capaz de dizer quais espetáculos serão um fracasso e quais serão um sucesso.
Na Broadway, ao anoitecer, pára um grande Rolls-Royce 1948 preto - e dele sai uma senhora baixinha, munida de uma Bíblia e de um cartaz em que se lê "Os condenados perecerão". Ela se dirige a uma esquina, onde fica bradando às multidões de pecadores da Broadway até as três da manhã, quando então o Rolls-Royce a leva de volta a Westchester. A essa altura a Fifth Avenue está praticamente vazia, exceto por uns poucos caminhantes insones, um ou outro taxista procurando clientes, e um grupo de mulheres sofisticadas que fica nas vitrines noite e dia, exibindo sorrisos frios e perfeitos - compostos de lábios de argila, olhos de vidro e rostos que não deixarão de brilhar enquanto a pintura não perder a cor. Como sentinelas, elas se enfileiram na Fifth Avenue - esses manequins de vitrine, que fitam a rua silenciosa, cabeças inclinadas, dedos dos pés delgados, e nas mãos compridos dedos de borracha estendendo-se para pegar cigarros inexistentes. Às quatro da manhã, algumas vitrines se tornam um estranho reino encantado, de deusas magricelas, todas paralisadas, prestes a correr para uma festa, mergulhar numa piscina ou flutuar em direção ao céu num vaporoso robe azul.
Essa ilusão fantástica se deve, em parte, a uma imaginação delirante, mas também à incrível capacidade dos fabricantes de manequins, que os dotaram de certos traços individuais - partindo do princípio de que não existem duas mulheres totalmente iguais, nem mesmo de plástico ou de gesso. O resultado é que os manequins da Peck & Peck são feitos para parecerem jovens e esbeltos, enquanto os da Lord & Taylor têm ar mais grave e cabelo curto, penteado para a frente. Na Saks eles são tímidos porém maduros, ao passo que na Bergdorf's possuem uma elegância sem idade e dão a impressão de serena opulência. Os perfis dos manequins da Fifth Avenue foram modelados a partir das mulheres mais encantadoras do mundo - mulheres como Suzy Parker, que posou para a empresa Best & Co., e Brigitte Bardot, que serviu de inspiração para alguns manequins da Saks. A preocupação em fazer manequins quase humanos, dotando-os de curvas, talvez seja responsável pelo estranho fascínio que muitos nova-iorquinos têm por essas virgens sintéticas. É por isso que alguns vitrinistas muitas vezes conversam com manequins e lhes dão apelidos, e que os manequins nus nas vitrines sempre atraem os homens, enojam as mulheres e foram proibidos na cidade de Nova York. Isso explica por que alguns manequins são atacados por tarados, e por que o esbelto manequim de uma loja de White Plains foi encontrado no porão, pouco tempo atrás, com as roupas rasgadas, a pintura manchada e o corpo apresentando marcas de uma tentativa de estupro. Certa noite a polícia montou uma armadilha e pegou o agressor - um homenzinho tímido: o porteiro.